sexta-feira, 20 de abril de 2018

Resposta ao Artigo de Robin Phillips "Questões Sobre a Sola Scriptura" (Robert Arakaki)

Em 29 de abril de 2011, Robin Phillips postou: "Questões a respeito do Sola Scriptura" em seu blog: Robin's Readings and Reflections [Leituras e Reflexões do Robin]. O que é tão marcante sobre os comentários de Phillips é que ele traz à luz as inconsistências internas presentes no 'sola scriptura'. Isto apresenta uma oportunidade para mostrar que a Ortodoxia provê uma alternativa mais coerente e consistente. Eu gostaria de agradecê-lo por convidar-me a responder sua postagem do blog.

Sinopse da Postagem de Robin Phillips

A postagem começa com uma descrição de um debate de James White com um grupo de Mormons. Quando os Mormons pediram a White para prover uma justificação para o 'sola scriptura', ele recusou baseado em que, se o fizesse, estabeleceria uma autoridade maior que a Escritura. Os Mormons então perguntaram a White sobre a base para o conhecimento de um livro como Escritura. White apelou para o critério da consistência com outras escrituras canônicas.

O debate fez com que Phillips ficasse pensando sobre o assunto do 'sola scriptura'. Ele colocou adiante uma crítica de parágrafo único contra o 'sola scriptura' feita por um hipotético apologista não-Protestante.


"Você pode oferecer razões para crer no 'sola scriptura'? Certamente você não pode, porque as razões para crer-se no 'sola scriptura' não podem vir de fora da escritura, pois isso contradiria a própria doutrina do 'sola scriptura'. Mas as razões para acreditar no 'sola scriptura' também não podem ser tiradas da escritura, porque a escritura nunca aborda a questão do 'sola scriptura', além disso ela nem mesmo define escritura (afinal de contas, a igreja deu-nos a página de Sumário da Bíblia)."


O ponto-chave da crítica é que o 'sola scriptura' não pode ser logicamente defendido porque ele exclui qualquer autoridade extra-bíblica. Phillips corretamente pontua que essa crítica é baseada numa versão distorcida do 'sola scriptura' à qual Keith Mathison define como "solo scriptura". Outro problema com a crítica do hipotético não-Protestante é que ela é muito Católica Romana em seu pensamento. Isto pode ser visto na confiança em raciocínio silogístico e na insistência em consistência lógica. Isto é muito diferente da abordagem Ortodoxa que clama apostolicidade e catolicidade. Isso é infeliz porque, ao não representar a abordagem Ortodoxa, foi perdida a oportunidade para o engajamento com a abordagem Ortodoxa Oriental para a autoridade da Escritura.

Na seção seguinte Phillips nota que o clássico entendimento do 'sola scriptura' --- Escritura como autoridade última mas interpretada dentro do contexto da 'regula fidei' [regra da fé] dada pela igreja --- levanta a questão sobre onde a 'regula fidei' deve ser encontrada. Também levanta a questão sobre se essa abordagem para o 'sola scriptura' faz o indivíduo o árbitro último a respeito do que é a 'regula fidei'.

Phillips escreveu a Keith Mathinson sobre este problema. Mathinson escreveu de volta dizendo que existem duas possíveis respostas: (1) uma única Igreja visível ou (2) uma igreja invisível manifestada através de vários ramos ou fragmentos visíveis. Mathinson opta pela última. Phillips encerra a postagem notando que para ele a teoria dos ramos da verdadeira igreja de Mathinson não parece ser funcional na prática.



Premissas Básicas para a Abordagem Ortodoxa



A premissa fundacional para a Ortodoxia é as Boas-Novas da ressurreição de Jesus Cristo no terceiro dia. Este evento histórico estabelece o senhorio de Jesus sobre o céu e a terra e seu comissionamento aos seus seguidores para ensinar às nações (Mateus 28:19-20). Deve ser notado que Jesus não prometeu uma Escritura inspirada mas sim o Espírito Santo que guiaria a igreja para toda verdade (João 16:13).

O testemunho apostólico é fundamental para o modelo Ortodoxo Oriental. Paulo e os outros apóstolos plantaram igrejas fundadas sobre a pregação do Evangelho. Os apóstolos estavam agudamente cientes de que eles estavam falando ao lado do Senhor ressurecto e portanto sua pregação apostólica tinha o peso de palavra de Deus (I Tessalonicenses 2:13; II Pedro 3:16). A pregação apostólica iria em seguida levar à sucessão apostólica (II Timóteo 2:2). As igrejas do Novo Testamento eram guiadas pela mensagem apostólica nas formas oral e escrita (II Tessalonicenses 2:15; I Coríntios 11:2).

A vantagem da reivindicação da Ortodoxia pela historicidade é que ela permite a si mesma verificação externa. Teologia em forma de narrativa histórica pode ser encontrada em Gênesis e Deuteronômio. Essas narrativas seguem os antigos pactos nos quais os poderosos feitos do Suserano eram recontados antes da apresentação dos termos e obrigações da aliança. Da mesma forma as narrativas históricas encontradas nos quatro Evangelhos proveem a base pactual para o Novo Testamento. Esta abertura para verificação externa significa que alguém pode exercer razão crítica para examinar os clamores de verdade da Igreja Ortodoxa e não ser forçado a cegamente aceitar o axioma teológico do 'sola scriptura'.

A Ortodoxia tem um entendimento pluriforme do testemunho apostólico. Ela acredita que o testemunho apostólico continuou de vários modos: (1) numa forma inscrita [inscritural; escritural], (2) na 'regula fidei' --- a confissão de fé recebida no batismo, (3) na celebração eucarística semanal em que os textos sagrados eram lidos, e (4) nos bispos --- os sucessores dos apóstolos cujo trabalho é expor o significado da Escritura e guardar o testemunho apostólico intacto para as gerações por vir.

O Protestantismo também acredita na apostolicidade porém de uma maneira bastante diferente. Acredita que depois que os apóstolos morreram o testemunho apostólico continuou somente numa forma inscritural [escrita] e que a autoridade da Escritura é independente da igreja. Onde a Ortodoxia assume uma continuidade essencial entre os apóstolos e a igreja pós-apostólica, o modelo Protestante interpõe uma série de rupturas e descontinuidades. Ele assume que a igreja pós-apostólica rapidamente caiu em heresia e apostasia, e que o Evangelho foi redescoberto com a Reforma Protestante.

Assim, a Ortodoxia assume uma igreja embutida na história humana mas fielmente salvaguardando a fé apostólica; o Protestantismo parece assumir uma navegação [i.e.: transmissão] pura da Escritura, através da história da igreja, sem ser afetada pelas vicissitudes das falhas humanas. Em essência, o paradigma protestante arrancou a Escritura de seu contexto próprio: a única verdadeira igreja. Se alguém isola o documento pactual da comunidade pactual, esse alguém acaba ou em tirania eclesiástica ou em caos hermenêutico.












Critérios Ortodoxos: Apostolicidade, Continuidade, Fidelidade, e Autoridade



Muitas das complexidades envolvendo o 'sola scriptura' podem ser mais facilmente entendidas se alguém a aborda como um sistema teológico. O 'sola scriptura' é concebido para fundir certas funções essenciais para um sistema teológico: (1) prover uma base para a formulação da doutrina e da prática, (2) prover uma estrutura hermenêutica para a correta leitura da Escritura, e (3) prover unidade doutrinal para a comunidade de crentes, a igreja. No que se segue eu espero demonstrar que a abordagem tomada pela Ortodoxia faz um trabalho melhor de preenchimento dessas funções para um sistema teológico.

~ Formação do Cânon ~
- Como alguém sabe que a Escritura é inspirada? E como alguém sabe quais livros são Escritura sagrada? -

A formação do cânon teve seu início dentro da vida da igreja primitiva. As cartas apostólicas e os quatro Evangelhos eram lidos em voz alta durante a Eucaristia semanal (Primeira Apologia de Justino, Capítulo LXVII; cf. Atos 2:42). A Eucaristia semanal estava sob supervisão do bispo, o sucessor dos apóstolos (Carta de Inácio aos Esmirniotas, Capítulos VIII-IX). O reconhecimento de o que era Escritura dependia de sua aceitação para as leituras da reunião Eucarística semanal. O critério principal parecia ser apostolicidade: o que uma igreja recebeu de um apóstolo era mutuamente reconhecido e compartilhado com outras igrejas fundadas por outros apóstolos. Cedo ali houve um consenso sobre os quatro Evangelhos e a maioria das cartas de Paulo. Ali existia alguma disputa sobre os outros escritos como Hebreus, Judas e Revelação [Apocalipse] que seriam a seu tempo reconhecidos como Escritura.

Inicialmente, a formação do cânon era um processo local e informal. Mais tarde concílios regionais formalizaram o processo através da feitura de listas oficiais, isto é, cânons. O principal intento por trás dessas listas era prover guiamento para a leitura da escritura na adoração. Esses concílios incluem: o Concílio de Laodiceia, o Concílio de Cartago, e o Cânon Apostólico que foi mais tarde aprovado pelo Concílio em Trullo. Quando os Concílios subsequentes, por exemplo, o Sexto Concílio Ecumênico, endossaram as decisões dos concílios anteriores, o processo de formação do cânon estava concluído.

O apelo protestante ao critério da consistência é realmente um apelo para um ideal abstrato. O que ele faz é colocar o Protestante individual no assento de motorista quando se trata da formação do cânon. A abordagem Ortodoxa por outro lado é histórica e conciliar. Diferentemente do Protestantismo, que toma a inspiração divina como o ponto inicial para a formação do cânon, a Ortodoxia toma a apostolicidade como seu ponto inicial. Esta abordagem está fundada na premissa da ativa presença do Espírito Santo na igreja pós-apostólica. Esta abordagem evita o debate a respeito de se a Igreja escreveu a Bíblia ou se a Igreja é baseada na Bíblia. A resposta é que ambas são o produto inspirado do Espírito Santo.

Esse é o motivo da sucessão apostólica importar tanto para o Ortodoxo. Continuidade na sucessão episcopal e continuidade no ensinamento são dois importantes meios para salvaguardar a leitura adequada da Escritura. Continuidade no ensinamento pode ser verificada através da leitura dos Pais da Igreja e dos Concílios Ecumênicos. Estes meios de verificação nos guardam [protegem] do secreto conhecimento dos Gnósticos e de inovações heréticas. Sucessão apostólica formal não é suficiente; deve haver também continuidade no ensinamento --- fidelidade. A Igreja de Roma pode clamar sucessão episcopal formal, porém após o Cisma de 1054 seu sistema teológico tornou-se cada vez mais afastado de sua base patrística.

O Cisma de 1054 e a controvérsia do Filioque representaram um momento divisor de águas na história da igreja. Se alguém aceita a cláusula do Filioque, então esse alguém aceita a abordagem Ocidental para a teologia, a qual assume que a teologia Cristã evolui à luz do entedimento da igreja sobre a Escritura. A abordagem Ortodoxa Oriental assume que a fé Cristã foi dada de uma vez por toda aos santos para todo o sempre e que o depósito apostólico deve ser guardado contra mudança.

~ Hermenêutica ~
- Como alguém chega no correto entendimento da Escritura? Qual é a abordagem apropriada para a leitura da Escritura? -

Quando alguém encontra dificuldade em entender um texto, a melhor coisa a se fazer é perguntar ao autor do texto o que ele ou ela intencionou. Se o autor não está mais vivo, a próxima melhor coisa a se fazer é perguntar aos estudantes que estudaram sob sua tutela [com ele; sob ele]. Esta é a vantagem da sucessão apostólica. Este é o motivo pelo qual o estudo dos pais primitivos da igreja é tão importante para a leitura apropriada da Escritura. Ela provê um meio pelo qual alguém pode ter acesso ao intento original do autor. No entanto, essa abordagem funciona somente se é possível demonstrar que existe uma ligação histórica voltando aos Apóstolos originais. A Ortodoxia pode fazer esse clamor, o Protestantismo não.

Na igreja primitiva alguém não poderia ser um membro a menos que esse alguém tivesse sido batizado e catequizado. Ser catequizado significava que esse alguém aprendera de [por; através de] um bispo a 'regula fidei' --- um curto credo semelhante ao Credo Apostólico. A 'regula fidei' tem suas raízes no ensinamento apostólico oral. Não foi derivado de uma exegese da Escritura. Ela constitui uma independente e complementar testemunha para a Escritura. O Credo Apostólico era a estrutura hermenêutica através da qual os Cristãos primitivos liam a Escritura. A seu tempo os credos locais tornar-se-iam o Credo Niceno, a definitiva confissão de fé para todos os Cristãos.

Keith Mathinson afirmou os credos de Niceia e Calcedônia como representativos da 'regula fidei' na base do testemunho do Espírito Santo. A abordagem de Mathinson é vulnerável à crítica de que ele afirma esses dois credos porque eles conformam-se à sua interpretação pessoal da Escritura. Isto deixa-o aberto à crítica da circularidade [raciocínio circular]. A Ortodoxia afirma o Credo Niceno e a Fórmula Calcedoniana pelos seguintes princípios: (1) essa foi a decisão feita pela Igreja através de seus bispos, os sucessores dos apóstolos e (2) isso foi recebido pela Igreja como um todo (católica [catolicamente]). A ênfase Ortodoxa na apostolicidade e catolicidade evita as ciladas da interpretação individual da Escritura e do raciocínio circular.

~Magistério e Comunhão ~
- Quem tem a autoridade para expor o significado da Escritura? Quais são as marcas que identificam a verdadeira Igreja? Podem ortodoxia doutrinal e unidade da igreja [eclesiástica] andarem juntas? -

Mathinson toma a clássica posição Reformada de que a Igreja é a verdadeira intérprete da Escritura. Mas isto leva à questão: "Onde está a Igreja?" Mathinson rejeita o Catolicismo Romano e a Ortodoxia Oriental em favor da teoria Protestante dos ramos da igreja. A posição de Mathinson é que, enquanto possam haver diversos ramos, alguns estão mais próximos da 'regula fidei' que outros. Esta abordagem é semelhante ao jogo popular "Onde Está Waldo?" [ou: Wally]. Mas Jesus intencionou que seus seguidores tivessem de passar por altas e baixas procuras [por altos e baixos na procura] para encontrar a verdadeira igreja? Eu proponho que uma abordagem melhor é assumir que a igreja primitiva no livro de Atos era a verdadeira igreja, que ela recebeu a 'regula fidei' por meio [a partir] dos apóstolos e que uma das marcas identificadoras da verdadeira igreja é continuidade histórica que pode ser traçada de volta aos apóstolos originais.

Na Ortodoxia, a Escritura é lida e entendida dentro do contexto da Tradição. Os bispos como sucessores dos apóstolos são os expositores autorizados da Escritura. Diferentemente dos apóstolos originais, os bispos dos presentes dias não podem reivindicar novas revelações, em vez disso sua autoridade é confinada à exposição do significado da Escritura em concordância com [de acordo com] a Tradição. Onde o magistério na Ortodoxia é fundamentado na sucessão apostólica, no Protestantismo ele é muito frequentemente [quase sempre] baseado em acadêmicos. Eu me lembro de caminhar pelo campus do {Seminário Teológico} Gordon-Conwell e perceber que a autoridade de ensino dos meus professores do seminário veio de seus graus de doutorado [Ph.D. degrees], não de sua ordenação [estabelecimento como ordenados; {recebimento da autorização protestante para o cargo}]. Meus professores da Gordon-Conwell poderiam apelar para a razão e academicidade, mas eles não poderiam invocar a autoridade da igreja.

A rejeição Ortodoxa Oriental da teoria dos ramos pode ser vista em sua prática da comunhão fechada: somente aqueles que estão em concordância com os ensinamentos da Igreja Ortodoxa e vivem sob a autoridade de seus bispos têm permissão para receber a Comunhão. Estar em comunhão com o bispo local significa estar em comunhão com todas os outros bispos Ortodoxos ao redor do mundo e com seus predecessores históricos todo o caminho de volta até os apóstolos originais. Isto dá à Ortodoxia notável consistência doutrinal em comparação com a fragmentada política do Protestantismo e sua considerável confusão teológica. De maneira semelhante, a posição Ortodoxa da comunhão fechada corta pela raíz a proposição de Mathinson de que, se alguém submete-se a outros somente quando esse alguém concorda com esses outros, então esse alguém está na verdade submetendo-se a si mesmo. Alguém pode livremente submeter-se ao magistério da Igreja Ortodoxa mas isto de maneira nenhuma afeta sua autoridade.



Conclusão



Como um sistema teológico o 'sola scriptura' é altamente problemático. Primeiro, é altamente instável. Isto pode ser visto nas duas versões: o clássico 'sola scriptura' vs. o popular 'solo scriptura'. Segundo, outro problema é sua incoerência teológica. Isto também pode ser visto na confusão doutrinal entre Protestantes mesmo eles tendo em comum o 'sola scriptura' como o ponto de partida para fazer teologia. Terceiro, é incapaz de promover a unidade Cristã. Esta propensão problemática para heresias doutrinais tem forçado muitos Protestantes a desafixarem-se e procurar por um novo lar eclesiástico levantando a questão: "Onde está a verdadeira igreja?" Ortodoxia doutrinal no Protestantismo tem frequentemente significado abandonar uma denominação de linha maior [de linha principal; de linha mais comum] trocando-a por um ramo menor e sectário. Ortodoxia e Catolicidade parecem ser opostos incompatíveis no Protestantismo moderno.

Quando eu era um Protestante eu era frustrado por conta do caos teológico entre o Evangelicalismo popular e o liberalismo de linha principal. Eu percebi que o 'sola scriptura' era um fardo pesado porque eu era compelido a avaliar as últimas modas teológicas em oposição ao meu estudo da Escritura. Eu desisti do 'sola scriptura' quando eu concluí que ele era incapaz de produzir uma teologia coerente capaz de unir o Protestantismo. Eu percebi que a teoria dos ramos exposta por Keith Mathinson era de muito pequeno valor prático. Eu costantemente senti como se eu estivesse parado embaixo de um guarda-chuva furado debaixo de uma chuva torrencial desejando que eu estivesse a salvo e seco numa casa. Eu encontrei um teto sobre minha cabeça e um banquete espiritual --- a Eucaristia --- disposto todos os domingos quando tornei-me Ortodoxo. Para tornar-me Ortodoxo eu tive de renunciar ao 'sola scriptura' porém em seu lugar eu ganhei a verdadeira Igreja fundada pelos apóstolos. O sistema teológico Ortodoxo tem uma estabilidade e coerência invencível em relação àquilo que o Protestantismo tem de melhor para oferecer.





Tradução: William Souza.

Artigo original: https://blogs.ancientfaith.com/orthodoxbridge/response-to-robin-phillips/

sexta-feira, 6 de abril de 2018

O Simbolismo da Mesa Pascal (Pe. Mikhail Vorobiev)

O Typikon chama cada refeição festiva de "grande consolo para os irmãos". A Pascha, que em importância está fora das fileiras dos doze principais dias de festa e é chamada de "Festa das festas e Celebração das celebrações", pressupõe uma abundância particularmente diversificada. No entanto, ao permitir esse consolo, a Igreja não endossa especificamente refinamentos que exigem muitos componentes ou pratos que são difíceis de preparar, considerando as novidades culinárias pretensiosas para cair sob o pecado da gula. Na mesa Pascal devem ser vários pratos simples, baratos, mas extraordinariamente saborosos, que trazem consigo um profundo significado simbólico.

Desde a primeira semana do jejum, a dona de casa responsável começa a guardar cebolas, que colorem os ovos da cor castanho-avermelhada mais adequada do que qualquer pó importado. Pintar ovos de Páscoa é uma verdadeira arte. Artistas miniaturistas são capazes de representar igrejas e mosteiros, buquês fantásticos, luzes celestes, o mar, florestas, estepes e montanhas, santos e anjos na superfície convexa. Exceto que toda essa pintura vem da influência do Ocidente, os verdadeiros ovos de Páscoa são sempre coloridos com cebolas!

A explicação dada para o costume de decorar os ovos de Páscoa de vermelho vem de um apócrifo bastante tardio que fala da conversão do imperador romano Tibério ao cristianismo. Desejando acabar com a pregação de Maria Madalena, ele declarou que preferiria acreditar em um ovo branco ficando vermelho do que na possibilidade da ressurreição dos mortos. Um ovo ficou vermelho, e isso se tornou o último argumento na polêmica que culminou no Batismo de César Romano.

O costume de trocar ovos coloridos entrou na vida da Igreja. O simbolismo do ovo como o começo de uma nova vida era conhecido ainda mais antes. Os cristãos viram neste símbolo a confirmação de sua fé na vinda da ressurreição. A cor vermelha do ovo de páscoa simbolizava o amor divino, que sozinho poderia destruir o inferno!











O kulich pascal assemelha-se aos artos em forma; pão este que é abençoado no ofício divino pascal e distribuído no sábado da Semana Luminosa. O artos pascal é um símbolo do próprio Senhor Jesus Cristo. Dirigindo-se aos discípulos, Ele disse: "Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto, e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo" (João 6:48-51). Artos é sempre preparado a partir de massa levedada. Este não é pão judaico sem fermento, no qual não há nada vivo. Este é o pão em que o fermento está respirando, a vida que pode durar para sempre. O status ontológico dos artos não permite a adição de nada supérfluo. Não contém produtos de panificação, nem aditivos aromáticos. Artos é um símbolo do pão mais cotidiano — Cristo, o Salvador, que é a vida!

No entanto, o kulich pascal, este artos que é trazido para a mesa festiva, tem, ao contrário, produtos de padaria, adoçantes, passas e nozes. O kulich russo devidamente preparado não fica obsoleto por semanas; é aromático, bonito, pesado e pode permanecer bom, sem estragar, durante todos os quarenta dias antes da Páscoa. Esta modificação do artos também tem uma base simbólica. O kulich pascal na mesa festiva simboliza a presença de Deus no mundo e na vida humana. A doçura, os bens de padaria e a beleza do kulich pascal exprimem, assim, a preocupação do Senhor por toda a existência humana, Sua compaixão, misericórdia, condescendência às fraquezas da natureza humana, Sua disposição de ouvir qualquer oração e auxílio do menor pecador.

O nome “dulcíssimo” dado ao senhor Jesus em um dos mais antigos akathistos ajuda a compreender o simbolismo do kulich pascal.

Ainda outro elemento indispensável da mesa pascal que é tão aromático e belo quanto: o queijo pascal, cujo simbolismo também está profundamente enraizado na Sagrada Escritura. Uma terra de rios de leite que flui através de bancos de kissel é um dos arquétipos mais difundidos e característicos das mais diversas culturas. Os rios de leite que fluíam ao longo dos bancos de kissel eram um eterno sonho dos camponeses russos, que se manifestavam em histórias e canções folclóricas.

O Senhor, dirigindo-se a Moisés, promete ao Seu povo escolhido uma terra boa e grande, a uma terra que mana leite e mel (Ex 3:8). Esta caracterização da Terra Prometida persiste ao longo de toda a história da Páscoa, a passagem dos judeus do Egito para a Palestina. É uma prefiguração do Reino Celestial, o caminho para o qual é para uma pessoa fiel mais difícil do que a jornada de quarenta anos dos judeus. Seu “leite e mel” é uma imagem da alegria sem fim, a bem-aventurança dos santos encontrada digna de salvação e permanência eterna diante do trono de Deus.

Assim, o queijo pascal é um símbolo da alegria da Páscoa, a doçura da vida paradisíaca, da bendita Eternidade, que não é uma continuação infinita do tempo, uma repetição sem sentido da mesma coisa, mas, segundo a profecia do Apocalipse, “um novo céu e uma nova terra". E a “colina”, a forma na qual a pascha é feita, é um símbolo da Sião Celestial, o fundamento duradouro da Nova Jerusalém — a cidade em que não há templo, pois o Senhor Deus Todo-Poderoso é o seu templo (Apocalipse 21:22).


Tradução: Felipe Rotta.