quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Carta a um Iconógrafo Sobre o Ancião de Dias (Pe. Stephen Bigham)

Nota do tradutor: a imagem inserida nesta postagem NÃO se refere à imagem citada pelo autor no final da carta, decidi colocá-la unicamente para expôr como é a representação do Ancião de Dias de acordo com a Tradição Ortodoxa para evitar a confusão de alguns leitores.


Nota do escritor: Há tempo atrás, um amigo me enviou uma imagem do Ancião de Dias que está sendo pintada em uma paróquia ortodoxa grega em Montréal, Quebec, Canadá. Ele queria saber o que eu pensava a respeito. A primeira imagem ainda não foi concluída e a segunda está concluída. Eu escrevi de volta os seguintes comentários.


Olá, Ângelo. Referência: Daniel 7: 9-22

As questões essenciais nesta passagem e a imagem do Ancião de Dias são estas: quem é o Ancião de Dias? E quem é o Filho do Homem que se aproxima dele para receber o reino? Esta passagem de Daniel historicamente foi usada para justificar teologicamente as imagens de Deus Pai, sozinhas ou em várias formas do que se chama Trindade do Novo Testamento — em oposição à Trindade do Antigo Testamento que é retratada na Hospitalidade de Abraão. A chamada Trindade do Novo Testamento tem várias formas, mas sempre mostra um homem velho com uma barba branca, um homem adulto ou um menino e uma pomba. De acordo com essa interpretação, o velho, o Ancião de Dias, é o Pai; o homem, o Filho; e a pomba, o Espírito Santo. Essas imagens e sua justificativa teológica tornaram-se tão comuns no mundo ortodoxo que ninguém, quase ninguém, as questiona. Mas eu, sendo impertinente, rebelde e — imagino — ortodoxo, espero-desejo levantar-se e desafiar a imagem e a explicação teológica como sendo contrárias à Sagrada Tradição.

Sabemos, a partir de estudos históricos e iconológicos, que tanto a imagem do Ancião de Dias como Deus Pai sozinho ou a chamada Trindade do Novo Testamento, e sua justificativa teológica baseada em Daniel não são da tradição da Igreja Ortodoxa. Somente em meados do final da Idade Média que a imagem e a sua justificação fazem sua aparição no mundo ortodoxo, e sua fonte é o Ocidente Católico Latino. Durante vários séculos, os pintores ocidentais haviam pintado várias formas da Trindade, que eventualmente foram justificadas por um apelo a Daniel e a sua visão do Ancião de Dias. Durante o período chamado Cativeiro Ocidental, quando os ortodoxos em todo o mundo engoliram quase tudo o que veio do Ocidente Latino como "melhor" do que as imagens e a  teologia ortodoxa "antiquadas", essa imagem e sua justificativa fizeram grandes avanços na mentalidade ortodoxa. E isto a tal ponto, que as pessoas esqueceram o Santa Tradição real e genuína dos Padres. E o que é essa Tradição?

Resumidamente, é de que o Logos de Deus Pai, o Filho, que historicamente se encarnou em Jesus de Nazaré, é aquele, a Pessoa, que se revela de forma vaga e imperfeita, como através de um espelho, timidamente, no Antigo Testamento. Quem falou com Moisés no Monte Sinai? Quem falou com ele na sarça ardente? Quem é o criador sobre o qual Gênesis fala? Com quem Adão e Eva andaram e conversaram no Jardim do Éden? A quem os profetas viram e ouviram suas visões? A unanimidade da Sagrada Tradição da Igreja Ortodoxa diz que foi o Logos Divino, o Filho, a segunda Pessoa da Trindade, e não o Pai. O Filho revela o Pai e o Espírito tanto no Antigo Testamento de uma forma "obscurecida", como abertamente no Novo Testamento. "E ele nos ensinou como a Lei e os Profetas falaram sobre ele". Então, a questão é essa: quem os profetas, e particularmente Daniel, viram nas suas visões? A resposta geral dos Padres é que eles viram e ouviram o Filho e não o Pai. Portanto, este princípio geral da interpretação — o Filho revela-se sombriamente no Antigo Testamento — deve ser suficiente para responder à questão da identidade do Ancião de Dias.






Porém, aqueles que querem justificar as imagens de Deus, o Pai, dizem: Mas olhe para a passagem de Daniel 7: 9-22, e você verá que o Ancião de Dias, apesar do princípio geral de interpretação mencionado acima, não é o Filho, o Logos, mas o Pai e, portanto, desde que o Pai Se tornou visível, podemos pintar sua imagem.

Eles dizem que esta pessoa, o Ancião de Dias, apareceu em sua glória, e então alguém como um Filho do Homem veio ao Ancião de Dias e recebeu um reino eterno. Uma vez que o título Filho do Homem é, obviamente, uma designação para Jesus, o Logos encarnado, que "se aproxima" do Ancião de Dias, obviamente há duas pessoas aqui: o Filho, o Logos, o Filho do Homem e o outro deve, portanto, ser o Pai. Eles dizem: “Não, você vê, a imagem de Deus, o Pai, como o Ancião de Dias, é bíblico, portanto, e ortodoxa.”

Devo admitir que isso parece bastante convincente, não é? É tão convincente que, durante vários séculos, as pessoas ortodoxas simplesmente aceitaram isso sem questionar. Mas vamos dar uma olhada em primeiro lugar em Daniel 7: 9-22. Qual é o contexto? Do que Daniel está falando? Qual é a sua visão? É bastante claro lendo cuidadosamente a passagem que temos uma visão do Julgamento Final, quando todos os bandidos, as bestas, serão destruídos e os Santos de Deus serão estabelecidos em paz. O versículo 9 começa: "até que foram postos uns tronos, e um ancião de dias se assentou". Onde e em qual posto? Como juiz no Julgamento Final: "Até que veio o ancião de dias, e fez justiça aos santos do Altíssimo; e chegou o tempo em que os santos possuíram o reino". Agora, do ponto de vista ortodoxo — eu mesmo diria do ponto de vista do cristão em geral — quem é o juiz que julgará todas as pessoas no último julgamento? Não há dúvida de que é Cristo, o Filho, o Logos de Deus, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade. “O Pai tem dado todo o julgamento ao Filho...” Então, desde o início, mesmo antes de o Filho do Homem aparecer, temos que identificar o juiz escatológico sentado em seu trono de julgamento como o Filho.

Mas então, o que fazemos com o Filho do Homem que se aproxima do Ancião de Dias para receber o Reino eterno? Não é óbvio que ele é uma pessoa diferente do Ancião de Dias? Bem, é tão óbvio assim?  Não esqueçamos que estamos lidando com uma visão e um sonho, então estamos em um reino onde a lógica do nosso mundo desperto não se aplica. Em segundo lugar, estamos lidando com um sonho sobre um evento que ainda não aconteceu e um que acontecerá após a ressurreição de todos, eventos que até agora só podemos falar em linguagem simbólica e poética, uma linguagem que não está de acordo com as leis lógicas que governam nossa vida aqui e agora. Portanto, não é óbvio que estamos lidando com duas pessoas distintas aqui, um o Pai e o outro, o Filho. É completamente possível, de acordo com a lógica dos sonhos e das visões escatológicas, que duas figuras possam representar a mesma Pessoa, em diferentes aspectos de seu Ser, ou mesmo que uma figura possa representar duas ou mais pessoas, seguindo novamente a lógica dos símbolos e sonhos. Eu diria que, desde o início da passagem em Daniel, o Ancião de Dias é o juiz escatológico — e da perspectiva ortodoxa, que deve ser Cristo — e o Filho do Homem também pode ser visto como o Filho, Cristo. Temos aqui duas figuras que representam dois aspectos da mesma pessoa. O Ancião de Dias no seu trono de glória, julgando as bestas e o Filho do Homem na sua humildade encarnado, que recebe o Reino eterno. "Mas Padre", você pode dizer: "O Ancião de Dias, então, está dando o reino eterno para si mesmo". Bem, está tudo bem. A linguagem e as imagens são simplesmente aquelas que o profeta escolheu para expressar sua visão. Sabemos que há dois aspectos da Encarnação: o Senhor da glória e o humilde servo. Colocando-nos na mentalidade dos sonhos e visões, não devemos nos surpreender que duas figuras representem simbolicamente dois aspectos da mesma realidade, a mesma Pessoa.

Portanto, não é necessário interpretar a visão de Daniel como duas Pessoas distintas: o Pai e o Filho. É completamente consistente com nossos princípios teológicos e linguagem dos sonhos, para ver que dois aspectos da mesma pessoa são "dramaticamente" representados. Esta interpretação também evita uma flagrante violação da regra aceita que o Filho se revela no Antigo Testamento. Não há outra passagem no Antigo Testamento, na qual se diz, pelos ortodoxos, que o Pai se tornou visível. E sabemos também que nenhuma outra passagem bíblica é localizada por aqueles que querem ver o Ancião de Dias como o Pai para justificar as imagens diretas da Trindade.

Então, todas as imagens do Ancião de Dias são proibidas como contrárias à Sagrada Tradição? Não, de fato, mas devem ser claramente identificadas como o Filho, de modo que o princípio seja preservado que é o Filho que se revela no Antigo Testamento. Há muitos exemplos desse tipo de imagem na Tradição Ortodoxa: um homem velho com uma barba branca com uma auréola em volta da cabeça com uma cruz na auréola e as palavras gregas, HO ON, significando Aquele que É, Yahweh. Isto é o que o orador disse a Moisés, quando Moisés perguntou qual era seu nome: Yahweh em hebraico e HO ON em grego. "Eu sou aquele que Sou" ou algo assim. Por que é que há HO ON na auréola de quase todos os ícones de Cristo? Essas palavras nos dizem que a Igreja diz que este homem, Cristo, é também aquele que falou com Moisés e os outros profetas, incluindo Daniel. Agora, quando olhamos para a imagem que foi/será pintada na paróquia de Montreal, vemos que, de fato, há uma auréola com HO ON, mas não há cruz, o que é outra maneira para a Igreja dizer que esse homem, Jesus, realmente morreu em uma cruz. Então, há um bom ponto, HO ON, e um ponto ruim, não há cruz, para esta imagem em particular. Outra coisa, o triângulo na auréola. Esse símbolo não está enraizado na Tradição Sagrada, mas é um símbolo maçônico que também foi importado para a tradição ortodoxa, mas não tem lugar. Às vezes, você também vê o "olho que tudo vê" como em notas de dólar americano, mas isso não tem lugar na iconografia ortodoxa. Outro ponto contra esta imagem. Assim, a palavra que eu usaria para caracterizar esta imagem é ambígua e, como tal, deve ser refeita de modo a mostrar claramente o ensinamento da Igreja sobre quem é o Ancião de Dias. Se o triângulo fosse removido e uma cruz colocada em seu lugar e talvez mesmo IC XC posto em sua cabeça, isso eliminaria toda ambiguidade e seria muito bom. No entanto, não aceito que seja tão fiel à Sagrada Tradição.

Bem, Ângelo, aposto que você não esperava obter uma resposta tão longa para sua pergunta, mas você deve perceber que nossa iconografia não é apenas fotos bonitas na parede, como um museu, mas ícones, ícones canônicos, Expressar em linhas e cores, o ensino da Igreja. Portanto, devemos estar vigilantes para não apoiar ícones "heréticos" ou ambíguos que apenas confundam pessoas em vez de ensiná-las adequadamente. Agora vou ler o jornal. Tenha um bom dia.

Em Cristo,

Padre Stephen Bigham.


Tradução: Felipe Rotta