"Os bizantinos consideravam a questão do Filioque como o ponto central de divergência com Roma. Em sua opinião, a Igreja latina, ao aceitar o Credo com uma interpolação, não somente se opunha ao texto adotado pelos Concílios Ecumênicos como expressão da fé cristã universal, mas também atribuía autoridade dogmática a uma falsa concepção da Trindade.
Entre os bizantinos, mesmo entre os que poderiam ser considerados mais moderados, como, por exemplo, o Patriarca Pedro de Antioquia, que se opôs sistematicamente ao antilatinismo de Miguel Cerulário, Patriarca de Constantinopla, se sustentava que essa interpolação era não somente “um mal, mas o mais pernicioso de todos os males.”
De maneira geral os bizantinos não tinham perfeito conhecimento das complicadas circunstâncias históricas que levaram à aceitação do Filioque no Ocidente, como o fato de que a interpolação desse termo no Credo se produziu na Espanha, no século VI, como forma de reforçar a postura antiariana da Igreja espanhola; a difusão do Credo com a interpolação em todo o império franco; o uso que Carlos Magno fez da interpolação em sua polêmica antigrega; a referência que alguns teólogos francos fizeram posteriormente à obra de Agostinho “De Trinitate”, para justificar a interpolação (embora o próprio Agostinho nunca a tenha pleiteado); e, finalmente, a aceitação do Filioque em Roma, provavelmente em 1.014.
Fócio foi o primeiro a apresentar, da parte grega, em 866, uma exaustiva refutação do termo interpolado, classificando-o não somente como uma alteração textual introduzida no Ocidente por alguns “francos bárbaros”, mas como uma arma de propaganda antibizantina entre os vizinhos búlgaros, recentemente convertidos ao Cristianismo pelos gregos, fato pelo qual o próprio Patriarca de Constantinopla se considerava responsável.
Em sua encíclica aos Patriarcas orientais, em 866, Fócio considera o Filioque como “a coroa de todos os males” introduzidos na Bulgária pelos missionários francos. Já se viu que a principal objeção teológica à interpolação era que a mesma comportava a confusão entre as características hipostáticas das três pessoas da Trindade, resultando numa nova forma de modalismo ou de semi-sabelianismo.
Depois dos Concílios dos anos 879-880, que ratificou solenemente o texto original do Credo e condenou formalmente todo aquele que se atrevesse a “compor outra profissão de fé” ou a corromper o Credo com “palavras ilegítimas, adições ou subtrações”, Fócio se considerou plenamente satisfeito. Para celebrar o que ele entendia como a vitória final da Ortodoxia, escreveu uma minuciosa refutação da doutrina sobre a “dupla processão” – sua célebre “Mistagogia” -, na qual, inclusive, chegou a felicitar o Papa JoãoVIII por ter tornado possível esse triunfo.
Depois da adoção definitiva do Filioque em Roma e em todo o Ocidente, o problema passou a ser alvo de disputas em qualquer encontro, polêmico ou amistoso, entre gregos e latinos. A literatura bizantina sobre o tema é extremamente volumosa e o mesmo foi estudado em algumas obras de referência, como nas monografias de Martin Jugie, Hans-Georg Beck e outros.
Os argumentos de Fócio, de que “o Filioque é uma interpolação ilegítima”, destrói a ‘monarquia do Pai’” e “relativiza a realidade da existência pessoal ou hipostática no seio da Trindade”, constituíam o núcleo da discussão. Porém, em muitas ocasiões, a controvérsia ficou reduzida a uma interminável enumeração, de ambos os lados, latinos e gregos, de textos patrísticos favoráveis a suas respectivas posturas. Porém, em muitas ocasiões, a controvérsia ficou reduzida a uma interminável enumeração, de ambas as partes, de textos patrísticos favoráveis a suas respectivas posturas.
As controvérsias sobre as antigas autoridades se centravam frequentemente em textos daqueles santos Padres – especialmente Atanásio, Cirilo de Alexandria e Epifânio de Chipre – cujo principal interesse residia na polêmica antiariana ou antinestoriana, ou seja, na ratificação da identidade de Cristo como eterno e o preexistente Logos divino.
Com referência ao Espírito Santo se empregavam, inevitavelmente, expressões semelhantes às adotadas na Espanha, no século VI, onde a interpolação havia aparecido pela primeira vez.
De determinados textos bíblicos, como João 20,22 (“Em seguida soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’”) se aduzia a prova da divindade de Cristo: se o “Espírito de Deus” é também o “Espírito de Cristo” (Romanos 8,9), não há dúvida de que Cristo é “consubstancial” a Deus.
Nesse mesmo sentido se pode dizer que o Espírito Santo é o espírito “próprio” do Filho, e, inclusive, que o Espírito “procede substancialmente de ambos”, Pai e Filho.
Em seu comentário a estes textos, no qual reconhecia sua correspondência com o pensamento patrístico latino, Máximo, o Confessor, os interpreta corretamente no sentido não de que “o Filho é a origem do Espírito”, pois “somente o Pai é a origem do Filho e do Espírito Santo”, mas de que “o Espírito procede ‘através’ do Filho, expressando, assim, a unidade de natureza”.
Em outras palavras, da atividade do espírito no mundo depois da Encarnação se pode deduzir a consubstancialidade das três pessoas da Trindade, porém não se pode inferir nenhuma causalidade na eterna relação pessoal entre o Filho e o Espírito.
No entanto, alguns teólogos denominados “latinófronos” (“de mentalidade latina”) pelos bizantinos, especialmente João Beccos (1275-1282), entronizado como Patriarca pelo imperador Miguel VIII Paleólogo, com a missão explícita de promover a “União de Lyon” (1274), se esforçaram por encontrar textos patrísticos gregos sobre a processão do espírito “através do Filho”, em favor do Filioque latino. Segundo os “latinófronos” tanto “do Filho” como “através do Filho” eram expressões legítimas da mesma fé trinitária.
A réplica habitual da parte ortodoxa consistia em demonstrar que na Teologia bíblica e patrística a processão “do” ou “através do” Filho se refere aos carismas (“charismata”) do Espírito Santo e não à sua própria existência hipostática. De fato, pneuma pode se referir tanto ao que doa como ao dom em si mesmo, e, em último caso, a processão do Espírito “do” ou “através do” Filho – através do Cristo histórico, do Filho feito homem – ocorre no tempo, e, portanto, não é equiparável à processão eterna do Espírito da hipóstase do Pai, única “fonte da divindade.”
No entanto, os principais teólogos ortodoxos dos séculos XIII e XIV taxaram de insuficiente essa réplica. Gregório de Chipre, sucessor de Beccos no Patriarcado (1283-1289) e Grão-Chanceler do Concílio (1285), que rejeitou oficialmente a “União de Lyon”, procurou fazer com que a assembleia aprovasse um texto que, ao invés de condenar o Filioque, reconhecesse uma “eterna manifestação” do Espírito através do Filho.
O que serviu de contexto à postura conciliar foi a noção de que os carismas do Espírito não são realidades temporais criadas, mas a eterna graça incriada, ou “energia” de Deus. A essa vida divina incriada o homem só tem acesso no corpo do Logos feito homem. Por conseguinte, a graça do Espírito não nos chega “por meio” ou “do” Filho; o que nos é concedido não é a própria hipóstase do espírito nem uma graça temporal criada, mas sim a “manifestação” externa de Deus, distinta de sua pessoa e de sua essência.
Este argumento foi usado também o grande teólogo ortodoxo do século XIV Gregório Palamás,o qual, como Gregório de Chipre, reconhecia formalmente que, enquanto energia, “o Espírito Santo é o Espírito de Cristo, que procede dele; Cristo o envia com seu sopro e o manifesta, porém, em seu próprio ser e em sua existência, é o Espírito de Cristo, mas não procede de Cristo, e sim do Pai.”
Com o passar do tempo se tornou cada vez mais evidente que a disputa sobre o Filioque não era puramente uma discussão verbal, pois havia um sentido no qual as duas partes estavam de acordo em afirmar que o Espírito procede “do Filho”, mas era um debate sobre se a existência hipostática das pessoas da Trindade poderia se reduzir a suas relações internas, como admitia o Ocidente após Agostinho, ou se a experiência primária do cristão era de uma Trindade de pessoas, cuja existência pessoal não se poderia reduzir à sua essência comum.
O problema era o seguinte: a “tripersonalidade” ou consubstancialidade foi o conteúdo primário e essencial da experiência religiosa cristã? Porém, para situar o debate nesse nível, e empreender um verdadeiro diálogo sobre o núcleo do problema, as duas partes precisariam entender plenamente a postura uma da outra; infelizmente isso nunca aconteceu. Inclusive no Concílio de Florença, no qual houve inumeráveis confrontações sobre a questão do Filioque, a discussão ficou centralizada nos intentos de adaptar as duas formulações, a grega e a latina.
Como decisão final o Concílio adotou uma definição da Trindade basicamente agostiniana, uma vez que afirmava que as formulação grega não estava em contradição com ela, mas, naturalmente, essa medida não foi a solução do problema fundamental."
Tradução: Pe. Gregório Teodoro.