Uma epístola do arcebispo Nikiphor de Kherson, 1754.
Devido a minha posição, tenho a obrigação de vigiar tudo e ver que tudo seja preservado completamente e que nada seja alterado. Em primeiro lugar, chamo sua atenção para o Santo Batismo, que é a porta de todos os mistérios, o início da nossa salvação, a absolvição dos pecados e a reconciliação com Deus. É o dom da adoção, pois no batismo nos tornamos filhos de Deus e herdeiros de Cristo, colocando Cristo nosso Senhor, pela palavra do Santo Apóstolo Paulo: 'Como muitos de vocês que foram batizados em Cristo, colocaram-se Cristo'. Sem isso, a salvação não é possível. 'Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus.' (João 3:5)
Discutindo sobre o Santo Mistério, devo ressaltar que:
1) A própria palavra ou nome deste mistério, na linguagem inicialmente usada pelos apóstolos esclarecidos para comunicar as boas novas do Evangelho para nós, na verdade, significa imersão, não aspersão.
2) O primeiro iniciador do batismo — o Senhor e Salvador Jesus Cristo, entrou no rio Jordão, e, imergindo-se, foi batizado.
3) O apóstolo Felipe foi até a água com o eunuco, a fim de batizá-lo. '... e eles caíram ambos na água, tanto Felipe quanto o eunuco, e ele o batizou' (Atos 8,38).
4) A Igreja Ortodoxa, de acordo com a tradição apostólica, sempre batizou através da imersão. Isto é visto no 7º cânone do 2º Concílio Ecumênico, que fala de imersão; na segunda homilia sobre a realização dos Mistérios por São Cirilo de Jerusalém, afirma claramente: 'Confessastes a confissão salvífica e, imersos três vezes na água, saíram dela', e nas palavras de São Basílio, o
Grande: 'Através de três imersões e o mesmo número de invocações é o grande mistério do Batismo realizado'.
5) A imersão na água, especificamente uma tripla imersão, e também uma tripla saída da água não foi instituída arbitrária ou acidentalmente, mas como a imagem da Ressurreição de Cristo no terceiro dia. 'A água', diz o abençoado Basílio, 'tem o significado simbólico da morte e aceita o corpo como um caixão'. Como, então, comparamos-nos com aquele que desceu ao inferno, imitando seu sepultamento através do batismo? Os corpos daqueles que são batizados na água são enterrados, em certo sentido. Conseqüentemente, o batismo representa místicamente, de acordo com a palavra do apóstolo, o abandono dos cuidados corporais: 'No qual também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, pela circuncisão de Cristo' (Col. 2: 11). São Cirilo, em seu comentário sobre as palavras acima, diz: 'Assim, com a ajuda desses sinais, você representou o enterro de três dias de Cristo porque, como nosso Salvador estava no coração da terra três dias e três noites, então, no primeiro a partir da água, você simbolizou o primeiro dia de Sua permanência sob a terra e, através da sua imersão, você simbolizou a noite. Pois, como alguém que entra na noite não vê nada, e aquele que anda durante o dia faz isso na luz, então você, imergindo-se na água, não viu nada, como se não visse nada durante a noite e tenha saído do água, você vê tudo como está em plena luz do dia. Vocês morreram e nasceram. Então, a água salvífica era para você um caixão e uma mãe. Embora na verdade não morramos, nem nos enterremos, nem estamos pregados na cruz, mas sim simulando isso simbolicamente, nós, no entanto, realmente conseguimos a salvação. Cristo foi verdadeiramente crucificado, verdadeiramente enterrado e verdadeiramente ressuscitado. Ele nos concedeu tudo isso, de modo que nós, ao imitar suas paixões, nos tornássemos participantes e, de fato, conseguiríamos a salvação'.
6) A Igreja Ortodoxa em todo o mundo até o momento batiza através de uma tripla imersão. As igrejas grega, árabe, búlgara e sérvia batizam desta maneira. Assim, é feito na Igreja Russa. Cada uma dessas igrejas tem um vaso no qual imergiu bebês não vestidos com a invocação do nome da Santíssima Trindade.
Não há dúvida de que esta prática de batizar infantes era a mesma em toda a Pequena Rússia. O Santo Príncipe Vladimir, que viveu e reinou em Kiev, aceitou a fé e todo o seu ritual de Igreja dos gregos, que ambos, então e agora, batizam através da imersão. Não parece estranho que aqueles que tinham gregos como professores e aqueles que foram batizados pelos gregos, agora não batizam através da imersão?
Em suma, acho que há base no pressuposto de que a prática de batizar através do derramamento de água começou em Kiev, e depois se espalhou pela pequena Rússia. Essa partida veio do momento em que os uniatas ganharam poder sobre o Metropolita de Kiev. Na igreja romana, até o século 12, ou melhor dizendo, até o final do século 13, o batismo através da imersão foi praticado. Mas então eles começaram a batizar não só por derramamento, mas também por aspersão. Como resultado, os pequenos russos são os únicos ortodoxos que reservam a imersão em relação a aspersão. Isso deu razão aos cismáticos para nos acusar de negligenciar a tradição apostólica, que é preservada sem mudanças em toda a Igreja Ortodoxa. Eles nos acusam de seguir o exemplo dos papistas que, juntamente com várias deleções incorretas, tiveram a audácia de mudar o Santo Batismo também. O apóstolo divino Paulo elogiou os coríntios altamente pela preservação da tradição com as seguintes palavras: 'Agora eu te louvo, irmãos, que lembreis de mim em todas as coisas, e guardem as ordenanças, como eu entreguei a vós' (I Cor. 11: 2). Ele pede aos tessalonicenses que se apeguem às tradições: 'Portanto, irmãos, fiquem firmes e segurem as tradições que foram ensinadas, seja por palavra, ou pela nossa epístola' (2 Tessalonicenses 2:15).
O método do batismo pela tripla imersão é, de fato, a tradição apostólica, que a Igreja Ortodoxa adere firmemente e inabalável dos tempos apostólicos até hoje. São Basílio mostra claramente o perigo que consiste em excluir qualquer coisa que nos foi transmitida do mistério do Santo Batismo: 'Há tribulação quando alguém morre sem o batismo, ou quando algo no mistério do batismo como foi entregue a nós é omitido'.
Por que é que nós fazemos omissões sobre algo de tão grande importância? Porque não guardamos essa tradição santa e apostólica (ou seja, o batismo através da imersão), pois é mantida por toda a Igreja Ortodoxa? Por que razão, com que desculpa podemos dar para explicar por que esse mistério é executado de maneira diferente por nós? Por que não se realiza a forma como foi transmitida pelos Santos Apóstolos, como os Santos Padres ensinaram, a forma como toda a Igreja Ortodoxa sempre a executou e a executa ainda hoje? Talvez alguém diga que é perigoso mergulhar bebês na água? Mas esta desculpa pode ser comparada a uma das quais o profeta real orou assim: 'Não incline meu coração em palavras do mal para pôr desculpas em pecados'. A vida de Sua Alteza Imperial, o Imperador e o Grande Príncipe Paulo Petrovich e seus filhos reais são muito preciosos. Contudo, sem hesitação e pela graça de Deus, foram batizados por imersão tripla em um vaso bastante profundo, que vi com meus próprios olhos na igreja imperial. Se tal exemplo não for suficiente, então o exemplo dos inúmeros infantes em todo o mundo, que a Igreja batiza todos os dias, ou melhor dizendo, a cada hora, por imersão tripla sem perigo para suas vidas, deveria ser suficiente.
Finalmente, se alguém dissesse que a água fria no inverno pode ser perigosa para a saúde de um bebê, ele deve saber que não existe uma lei que declare que a água utilizada no batismo deve ser fria ou quase congelada. É possível usar água à temperatura ambiente, o que não é tão fria quanto a que se encontra lá fora.
Já foi dito, meus amados filhos em Cristo. Já foi dito para você não batizar através de derramamento, mas através da imersão. Assim, você estará entre os primeiros na Pequena Rússia a estabelecer um exemplo sagrado e a alcançar a glória ao preservar a tradição apostólica. Da mesma forma, ao servir e manter antigas tradições da Igreja, você será merecedor de uma recompensa de Deus. Tendo dito tudo isso, para que ninguém ignore este edito sob o pretexto de que não havia diretrizes concisas, pela nossa autoridade pastoral, decretamos que todos aqueles que estão sob nosso domínio espiritual:
1) Esforce-se que, em todas as igrejas, exista um vaso de prata ou de cobre (ou uma feita de algum outro metal apropriado) que tenha a forma de um sino ou banheira: estreita no fundo e tão profunda quanto ampla, prática para uso.
2) Instrua os sacerdotes em todos os lugares que, sobre o referido vaso contendo água, sejam pronunciadas as orações apropriadas, e que os bebês sejam batizados nesta água benta através de uma imersão tripla com a invocação de uma das Pessoas da Santíssima Trindade com cada imersão. Em uma palavra — que tudo seja feito da mesma maneira que os batismos que ocorrem na Grande Rússia.
3) Insista estritamente em que a água sagrada após o batismo não seja descartada em algum lugar impuro, mas derramada cuidadosamente, com o devido respeito, na bacia onde o sacerdote lava as mãos. O vaso batismal não deve ser usado para nenhum outro propósito, e deve ser mantido na igreja entre os vasos sagrados.
Além disso, decretamos que, em cada igreja, haveria dois vasos menores feitos de prata, cobre ou bronze — um para guardar o Santo Crisma, que sempre deve ser guardado na igreja em um lugar apropriado, e outro para guardar o óleo sagrado, que é usado durante o Batismo. Este vaso, juntamente com um par de tesouras, deve ser mantido em uma caixa limpa, que deve ser decorado de forma adequada, de modo que aqueles que estão fora da fé não teriam motivos para acusar.
Para aqueles que são obedientes e estão dispostos a cumprir este edito, prometemos as bençãos de Deus, a glória eterna e a nossa benção pastoral.
Tradução: Felipe Rotta.
domingo, 26 de novembro de 2017
quinta-feira, 23 de novembro de 2017
São Fócio o Grande, o Concílio de Fócio e as Relações com a Igreja Romana (Dr. David Ford)
INTRODUÇÃO
Há uma discussão considerável hoje dentro da Igreja Ortodoxa no mundo todo sobre o status do chamado "Concílio de Fócio", realizado em Constantinopla em 879-880. Este é um concílio extremamente importante na história da Igreja Ortodoxa e, portanto, merece ser muito mais conhecido entre os fiéis ortodoxos. E este concílio é de especial relevância para a nossa Igreja Ortodoxa em relação à Igreja Católica Romana, na medida em que 1), proibiu oficialmente qualquer adição ao Credo Niceno, rejeitando a cláusula Filioque, que foi utilizada por muitas igrejas em Europa ocidental naquela época (embora não em Roma até 1014); e 2), rejeitou implicitamente o princípio da supremacia papal, ou autoridade jurisdicional, sobre as Igrejas orientais, na medida em que este concílio invalidou o concílio pró-papal de Inácio realizado em Constantinopla dez anos antes. Mas em uma das maiores ironias da história cristã, o Concílio de Fócio foi reconhecido como legítimo pelo papado por quase 200 anos até o período da Reforma Gregoriana, quando os advogados canônicos do Papa Gregório VII (1073-1085) rejeitaram a Concílio de Fócio e ressuscitou o Concílio de Inácio para tomar seu lugar.
Minha opinião pessoal é que esta substituição, 200 anos após o fato, foi facilitada para a Igreja Romana, devido à circunstância de a Igreja Oriental não proclamar o Concílio de Fócio como o Oitavo Concílio Ecumênico. Há razões compreensíveis para essa circunstância, que eu vou discutir perto do final deste artigo. Por agora, simplesmente observarei que esta substituição tornou a reconciliação entre as igrejas católicas e as igrejas orientais tremendamente mais difícil ao longo dos séculos — já que a Supremacia Filioque e Papal foram os dois maiores obstáculos que impedem a reconciliação até hoje.
OS ANTECEDENTES BÁSICOS DA HISTÓRIA DESSES DOIS CONCÍLIOS
São Fócio, o Grande (c. 815-c. 891) foi chamado:
"O mais conceituado pensador, o político mais destacado e o diplomata mais habilidoso que já ocupou o cargo de Patriarca de Constantinopla". [1]
Ele era da nobreza de Constantinopla. Seus pais, Sergios Georgios e Irene, sofreram como confessores da fé, pois defendiam a veneração dos ícones sagrados durante a segunda onda da heresia Iconoclasta e são santos em nossa Igreja. Eles foram exilados e separados do filho quando tinha cerca de nove anos de idade; eles aparentemente nunca mais o viram. O dia da festa é 13 de maio. O tio de Fócio foi São Tarasios, o Patriarca de Constantinopla, que presidiu o Sétimo Concílio Ecumênico, realizado em Niceia em 787, que defendeu oficialmente os ícones contra os Iconoclastas.
O jovem Fócio recebeu uma excelente educação clássica sob a supervisão de parentes. No início, ele mostrou interesse pelo monaquismo, mas ele decidiu uma carreira de estadista, tendo excelentes conexões na corte imperial. Inicialmente, serviu como Secretário Imperial e depois como embaixador em Bagdá. Mais tarde, tornou-se professor na Universidade recentemente revogada de Constantinopla, que desempenhava um papel fundamental no grande avivamento da cultura e da aprendizagem que aconteceu em Bizâncio após o triunfo da ortodoxia em 843, que de uma vez por todas restaurou a veneração de os ícones sagrados.
Em 23 de outubro de 858, o Patriarca Inácio de Constantinopla renunciou de seu cargo, em parte sob pressão do Imperador Miguel III (filho da Imperatriz Theodora), a pedido de Caesar Bardas, irmão de Theodora e primeiro-ministro do governo, cujo relacionamento com Patriarca Inácio condenou-se como incestuoso — embora isso possa ter sido uma acusação infundada. De acordo com o proeminente historiador católico romano Francis Dvornik, Inácio também renunciou
"Sob o concílio de bispos ansiosos por impedir um conflito entre a Igreja e o Estado". [2]
Dvornik continua a dizer que Inácio
"pediu a seus seguidores que selecionassem um novo patriarca. Em um sínodo local, os bispos de ambas as partes [os rigoristas que apoiam Inácio e os moderados apoiando Fócio] recomendaram ao imperador o leigo Fócio [cujos talentos brilhantes eram bem conhecidos], evitando a eleição de um bispo de cada parte rival. Fócio foi reconhecido como o patriarca legítimo por todos os bispos, até os cinco seguidores mais fiéis de Inácio, depois que Fócio lhes havia dado certas garantias sobre a posição de Inácio após sua abdicação." [3]
858: CONSAGRAÇÃO DE FÓCIO COMO PATRIARCA
Muito relutantemente, Fócio aceitou esta convocação completamente inesperada da Igreja e do Imperador para ser o novo patriarca. E porque a Natividade do Senhor se aproximava rapidamente, e um patriarca seria necessário para liderar os ofícios, Fócio foi elevado ao cargo de Patriarca através de cerimônias de tonsatura, ordenação diaconal e sacerdotal e consagração como bispo em cinco dias consecutivos (Santo Ambrósio de Milão havia sido elevado de leigo a bispo de forma similar em 386, assim como São Tarasios em 784). Sua consagração como Patriarca foi realizada por Bp.
"Gregório Amianto, líder dos liberais e por dois bispos de Inácio". [4]
Agora, o enredo realmente se espessa! De acordo com Dvornik,
"Cerca de dois meses após a ordenação de Fócio, os seguidores extremistas de Inácio, reunidos na igreja de Santa Irene, recusaram a obediência ao novo patriarca e exigiram o restabelecimento de Inácio. O motivo dessa ação pode ter abordado diferentes interpretações da natureza das garantias dadas por Fócio aos cinco líderes do partido inaciano. Fócio convocou um sínodo na igreja dos Santos Apóstolos (859). O partido opositor impediu sua condenação provocando uma revolta (Zonnaras, PG 137: 1004f), que teve um histórico político e que foi suprimido com derramamento de sangue pela polícia imperial. Fócio protestou contra a crueldade da polícia e ameaçou Bardas com sua abdicação [certamente isso é uma clara indicação de sua falta de concupiscência para o cargo, como os críticos ocidentais o acusaram há tantos séculos].
Após a paz ter sido estabelecida, o sínodo foi novamente convocado na igreja do palácio de Blachernae. A fim de privar a oposição de qualquer reivindicação sobre a legitimidade do patriarcado de Inácio, o sínodo declarou, a pedido de Bardas, que todo o patriarcado de Inácio era ilegítimo porque não fora eleito por um sínodo, mas simplesmente fora nomeado pela Imperatriz [St.] Theodora [de volta em 847]. Durante os tumultos, Inácio e alguns de seus seguidores foram presos. Inácio foi internado em vários lugares, finalmente para um mosteiro na ilha de Terebinthus. Bardas deve, contudo, convencer-se de que Inácio não foi responsável pelos tumultos, porque ele permitiu que ele permanecesse (860) no palácio de Posis em Constantinopla, que foi construído pela mãe de Inácio.
Por causa desses problemas, somente em 860 Fócio foi capaz de enviar a carta [costumeira] ao Papa Nicolau I [e os outros patriarcas — Alexandria, Antioquia e Jerusalém] quanto à sua entronização. Nessa comunicação, ele anunciou que aceitou suas eleições involuntariamente após Inácio ter abdicado." [5]
Nesta carta, de acordo com Despina White,
"Fócio, depois de confessar sua dedicação à ortodoxia, afirmou que ele preferiria ficar com seus livros e seus alunos ansiosos, mas concordou em se tornar patriarca na 'obediência à vontade de Deus, que o punia por suas transgressões.'"[6]
Despina White continua a contar:
"Em outra epístola, para Bardas, Fócio reclamou novamente que foi forçado por Bardas a enfrentar a sua vontade." [7].
Algum tempo depois, Fócio escreveu uma carta mais pessoal apenas ao Papa Nicolau, na qual declarou:
"Deixei uma vida tranquila, deixei uma calma com doçura. Deixei minha tranquilidade favorita. Quando fiquei em casa, mergulhei com os prazeres mais doces, vendo a diligência daqueles que estavam aprendendo, a seriedade daqueles que faziam perguntas e o entusiasmo daqueles que responderam. E quando eu tinha que ir aos meus deveres no palácio imperial, eles me enviaram suas calorosas despedidas e me pediram para não demorar. E quando voltei, esse grupo estudioso me esperava diante da minha porta; ... e tudo isso foi feito francamente e claramente sem malícia, sem intriga, sem ciúmes. E quem, depois de ter conhecido tal vida, toleraria vê-la derrubada e não se lamentaria? É tudo isso que eu deixei, tudo o que eu choro, cuja privação me fez derramar córregos de lágrimas e envolveu-me em um nevoeiro de tristeza." [8]
Certamente, essas cartas desafiam fortemente a típica acusação ocidental que Fócio desejava o escritório patriarcal e que, de alguma forma, o usurpou.
Para continuar com a conta do Dvornik:
"O imperador Miguel e Fócio também pediram ao Papa que enviasse legados a um novo concílio em Constantinopla, que mais uma vez condenaria a iconoclastia e confirmaria a decisão tomada por Theodora em 843 sobre o restabelecimento do culto às imagens". [9]
861: O CONCÍLIO EM CONSTANTINOPLA
Agora, o Papa Nicolau, que se revelaria como um dos papas mais fortes da história do papado romano, e um dos mais empenhados em estender a autoridade papal, já estava ocupado tentando consolidar e ampliar o poder do papado sobre as igrejas no Ocidente, que estavam longe de estarem seguras neste momento. [10] Nicolau estava especialmente atento a fazer isso, já que era um momento em que o prestígio e a autoridade papal estavam em um refluxo particularmente baixo, e ele era um ardente defensor e promotor da idéia e prática da supremacia papal sobre todas as Igrejas de Cristo. É bastante evidente, pelo fato de os acontecimentos se desenrolarem que ele viu essa controvérsia em Constantinopla como uma excelente oportunidade para tentar expandir o poder papal sobre a Igreja Oriental também. Assim, em 861 ele aceitou ansiosamente o convite de Fócio para enviar legados papais a Constantinopla para participar deste próximo concílio da Igreja, mas com a idéia de tornar a ocasião para investigar e reconsiderar toda a questão da elevação de Fócio para o cargo de patriarca.
De volta a Constantinopla, indicando ainda mais seu interesse em manter boas relações com Roma, Fócio recebeu os legados papais com "grande deferência" [11], convidando-os a presidir o concílio. E, como podemos dizer de suas cartas, provavelmente Fócio teria ficado feliz em deixar Inácio voltar como patriarca.
Este Concílio, realizado em 861, foi de fato presidido pelos legados papais. Após uma investigação minuciosa, o concílio determinou que Fócio era, de fato, o patriarca legítimo — e essa decisão foi apoiada pelos legados papais. Mas quando os legados relataram este veredicto de volta a Nicolau, ele se recusou a aceitar a decisão, já que ele não forçou a Igreja Oriental a se submeter à vontade de reintegrar Inácio.
863: O CONCÍLIO DE ROMA
Assim, o papa Nicolau declarou que seus legados "ultrapassaram seus poderes". [12] Ele rejeitou sua decisão e a do concílio para aceitar Fócio como legítimo patriarca e procedeu a repetir o caso em um conselho realizado sob sua presidência em Roma em 863. Este conselho declarou, sem dúvida, Inácio como patriarca, declarando
"Fócio deposto de toda dignidade sacerdotal". [13]
Nicolau também afirmou que todos os clérigos ordenados por Fócio durante os cinco anos anteriores deveriam ser destituídos!
"Esta afirmação da autoridade papal naturalmente causou grande ofensa em Constantinopla". [14]
A prova de que o patriarcado de Constantinopla de modo algum aceitou as pretensões papais de ter autoridade jurisdicional sobre ela é o fato de que esses pronunciamentos do Papa Nicolau e do Concílio de Roma de 863 foram completamente ignorados pela Igreja em Constantinopla; nenhuma resposta foi enviada para Nicolau! Agora existe uma brecha aberta entre Constantinopla e Roma — uma violação que obviamente foi criada por Nicolau e seu concílio, e não por Fócio! Mas porque, do ponto de vista papal, Fócio estava desafiando a autoridade papal, este cisma foi culpado por ele. Assim, desde o Ocidente, esse cisma foi conhecido como o "Cisma de Fócio".
PRESUNÇÕES PAPAIS DE NICOLAU
O papa Nicolau tentou afirmar que um canon do Concílio de Sardica (em 343) justificou suas ações no concílio de Roma em 863. Este canon (Canon 3) permitiu que os apelos a respeito de qualquer bispo que fosse condenado a ser feito a Roma; mas Roma só é autorizada por este canon para conceder um novo julgamento — se houver uma causa devida — a ser realizada na região adjacente à do bispo condenado. Ao exigir um novo julgamento após o Concílio de Constantinopla de 861, e ao segurá-lo em Roma, o Papa Nicolau ultrapassou em muito os limites deste cânone do Concílio de Sardica. [15]
Nicolau fez suas intenções muito claras em 865 em uma carta que escreveu ao imperador Miguel, no qual ele declarou que a Igreja romana tem autoridade
"Sobre toda a terra, isto é, sobre todas as igrejas" [16].
Como o historiador católico romano David Knowles escreve,
"para o Imperador, as reivindicações foram feitas a poderes até então nunca exercidos no Oriente, como o direito de Roma de convocar partes em Roma para o exame de seu caso, embora nenhum recurso tenha sido interposto por eles. Nicolau usa linguagem sobre o papado que não foi excedido em força mesmo por Gregório VII [r. 1073-1085]. Criados como príncipes sobre toda a terra, os papas são um epítome de toda a Igreja; todos os cristãos estão sujeitos ao domínio papal; sem a Igreja de Roma não há cristianismo; o papa é mestre dos bispos. O papa é mediador entre Cristo e homem, e é através dele que os poderes dos imperadores e dos bispos fluem." [17]
O impasse foi intensificado pelo conflito sobre o trabalho missionário franco/alemão e grego entre os eslavos da Europa Oriental, onde o trabalho missionário paralelo feito pelos alemães de língua latina e os bizantinos de língua grega estava sendo realizado de acordo com princípios bastante diferentes. O confronto ocorreu na Bulgária, onde o Khan Boris, no início, se inclinou para os alemães, mas quando ameaçada por uma invasão militar bizantina, ele mudou de idéia e aceitou o batismo do clero grego (levando Miguel como seu nome de batismo, depois do imperador bizantino) em 865 pouco tempo depois, o Patriarca Fócio escreveu a Khan Boris uma longa carta descrevendo todos os deveres de um príncipe e governante cristão apropriado; nesta carta, ele inclui uma história detalhada dos sete Concílios Ecumênicos. [18]
Mas Khan Boris queria que a nova Igreja em sua terra da Bulgária fosse o mais independente possível, então ele então olhou para o Ocidente com a esperança de melhores termos. Ele permitiu aos missionários latinos uma mão livre, e criticaram fortemente o clero grego por se casar, por terem diferentes regulamentos de jejum, para permitir que os sacerdotes administrem o Crisma (apenas os bispos faziam isso no Ocidente, onde era conhecido como "confirmação"), e acima de tudo, por não usar o Filioque! Embora o Filioque ainda não fosse usado oficialmente em Roma (onde continuaria sendo resistido até 1014, quando foi usado pela primeira vez no culto público lá), o Papa Nicolau não tentou impedir os alemães de usá-lo — aparentemente ele teve menos reservas a respeito do que o seu antecessor, o Papa Leão III, que, ao permitir que Carlos Magno e os Francos usassem, em 808 o Credo Niceno original gravado em tabletes de prata e exibido de forma proeminente na Basílica de São Pedro no Vaticano.
867: O CONCÍLIO EM CONSTANTINOPLA
Em 867, quatro anos depois que o Papa Nicolau e o Concílio de Roma de 863 tentaram depor e anatematizá-lo, Fócio sentiu que ele não poderia ficar em silêncio. Em uma carta encíclica a todos os patriarcas orientais, denunciou a presença de missionários latinos na Bulgária com suas diversas práticas e crenças não-ortodoxas — especialmente o Filioque — e anunciou um próximo sínodo a ser realizado em Constantinopla para abordar essas questões. Aqui está um trecho desta carta sobre o Filioque:
"No entanto, mesmo que não citemos todas essas e outras inovações da Igreja de Roma, a simples citação de sua adição do Filioque ao Credo de Nicéia seria suficiente para sujeitá-los a mil anátemas. Essa inovação blasfema o Espírito Santo, ou mais corretamente, toda a Santíssima Trindade." [19]
Podemos acrescentar aqui que São Fócio mais tarde escreveu um ensaio extensivo criticando o Filioque, que dirigiu aos teólogos ocidentais, intitulado A Mistagogia do Espírito Santo.[20] Neste trabalho, Fócio chama o Filioque de
"O enganar a embriaguez da impiedade!" E "este blasfema que bate na monarquia [dentro da divindade] em muitos princípios e causas em uma espécie de "semi-sabelianismo monstruoso." [21]
De acordo com o Oxford Dictionary of the Christian Church, a crítica de Fócio ao Filioque
"Forneceu a todos os teólogos grego subsequentes com suas objeções ao dogma ocidental". [22]
E é assim que Fócio descreveu na mesma carta a todos os patriarcas os missionários alemães que vieram para a Bulgária:
"Pois os búlgaros não haviam sido batizados até dois anos, quando homens desonestos emergiram da escuridão (isto é, o Ocidente), e derramados como granizo — ou melhor, carregados como javalis selvagens sobre a vinha recém-plantada do Senhor. Eles o destruíram com cascos e presas, ou seja, por suas vidas vergonhosas e dogmas corrompidos. Os missionários papais e o clero queriam que esses cristãos ortodoxos se afastassem dos dogmas corretos e puros de nossa fé irrepreensível." [23]
Em 1948, o estudioso católico romano Francis Dvornik publicou um livro meticulosamente pesquisado intitulado The Photian Schism: History and Legend. [24] Este trabalho bravamente pioneiro tem feito muito para suavizar a hostilidade e o rancor mantidos pelo Ocidente contra a Fócio por mais de mil anos. Mas ainda assim, neste livro, Dvornik chama essa carta do Patriarca Fócio
"Um ataque fútil", "um lapso desconsiderado, apressado e grande com consequências fatais". [25]
Mas, como observa o bispo Kallistos Ware, foi o Ocidente quem foi o agressor do Filioque, com Roma, permitindo seu uso pelos francos. Como Fócio estava convencido de que era herético, ele tinha que agir. [26]
Assim, neste ano importante de 867, um grande concílio se reuniu em Constantinopla, com algo como 1000 bispos, sacerdotes e monges presentes. O Concílio declarou o Papa Nicolás deposto, anatematizado e excomungado; ele foi chamado
"Um herege que ravaga a vinha do Senhor". [27]
E de acordo com Dvornik,
"Nicolau foi condenado e o imperador Louis II foi requisitado para o depor." [28]
Também neste Concílio o Filioque foi condenado como herético, e a interferência romana nos assuntos internos da Igreja Oriental foi denunciada como ilegal.
Em 23 de setembro de 867, Basílio, o macedônio, o co-imperador, ao ouvir um rumor de que o imperador Miguel planejava matá-lo, matou o imperador (que era conhecido, não sem motivo, como "Michael the Drunkard") e assassinou Caesar Bardas também, usurpou o trono, estabelecendo uma nova dinastia — a dinastia macedonia. A fim de ganhar o favor e o apoio de Roma — especialmente porque ele literalmente tinha "sangue nas mãos" de sua usurpação assassina do trono, ele tinha deposto Fócio e Inácio reposto como Patriarca de Constantinopla. A comunhão com Roma foi restaurada, com Basílio e Inácio escrevendo cartas extremamente inferiores ao papa Nicolau — cartas que pareciam reconhecer a supremacia papal mesmo sobre a Igreja Oriental. [29]
No dia 13 de novembro deste mesmo ano, o Papa Nicolau morreu, antes de ouvir sua excomunhão do Concílio de Constantinopla realizada no início desse ano. Ele foi sucedido pelo papa Adriano II (p. 867-872), que provou ser um papa relativamente forte, mas não tão contundente como Nicolau. Ainda assim, ele supervisionou um concílio em Roma realizado em 869, atendido por delegados gregos, que condenou o Concílio de Constantinopla de 867 e queimou suas atas publicamente.
O "CONCÍLIO INACIANO" DE CONSTANTINOPLA EM 869-870
Em 869-870, outro concílio foi realizado em Constantinopla, desta vez sob Patr. Inácio. Foi chamado pelo imperador Basílio e submetido à pressão imperial por ele. Este concílio abriu com apenas doze bispos (mais tarde a subir para 103). Seu pequeno número se deveu ao fato de que "a grande maioria da hierarquia e do clero permaneceu fiel a Fócio". [30] Conhecido como o "Concílio Inaciano", este encontro condenou e anatematizou Fócio. Ele foi então enviado para o exílio, mesmo sem os seus livros. [31] Em suma, este concílio foi o concílio mais pró-romano realizado na Igreja Oriental. Afirmou que "na Sé apostólica [isto é, Roma], a religião católica sempre foi mantida imaculada, e seu ensinamento manteve-se santo. Não desejando não ser separado dessa fé e doutrina esperamos que possamos merecer ser associados com você na comunhão única que a Sé Apostólica proclama, na qual reside toda a verdade e a segurança perfeita da religião cristã". É fácil ver por que esse conselho foi citado no Vaticano I, que declarou a infalibilidade papal como dogma em 1870. [32]
Um teria pensado que este conselho muito pró-romano teria satisfeito o papado. Mas este conselho também pediu ao imperador Basílio que resolvesse o status da recém-formada Igreja Búlgara e, surpreendentemente, atribuiu-a à autoridade do Patriarcado de Constantinopla. O patriarca Inácio desafiou os protestos romanos sobre isso e nomeou um arcebispo e bispos para os búlgaros, expulsando todo o clero latino. Os búlgaros aceitaram esse desenvolvimento, pois finalmente perceberam que sua Igreja teria mais independência em Constantinopla do que em Roma. Mas Roma ameaçou Inácio com excomunhão, e as relações entre as duas Igrejas estavam muito tensas novamente.
A RECONCILIAÇÃO DE FÓCIO COM O IMPERADOR BASÍLIO E O PATRIARCA INÁCIO
Em 873, Fócio foi tirado do exílio pelo imperador Basílio, que agora havia transferido sua fidelidade dos conservadores extremos da Igreja para o partido mais moderado que ainda apoiava Fócio. Até agora, Basílio estava firmemente instalado no poder e já não precisava do apoio do partido inaciano, ou de Roma. Ele mesmo fez de Fócio o tutor para seus filhos Leo (o futuro imperador) e Alexandre, e Fócio retomou suas palestras na Universidade.
Nos anos seguintes, Inácio e Fócio foram reconciliados; e quando Inácio aproximou-se da morte, ele estipulou que queria que Fócio o sucedesse como patriarca. Isso é o que aconteceu, pois depois que Inácio morreu, em 23 de outubro de 877, Fócio foi devolvido ao trono patriarcal. E logo depois, Fócio trabalhou para a canonização oficial de Inácio como um santo — o dia da festa é 23 de outubro.
O "CONCÍLIO DE FÓCIO" DE CONSTANTINOPLA EM 879-880
Em 879-880, outro concílio é realizado em Constantinopla, com 383 bispos presentes, o que anulou as decisões do Concílio Inaciano, muito mais pequeno e muito politicamente motivado, de 869-870, que afirmou Inácio em vez de Fócio como o legítimo patriarca de Constantinopla. Os legados do Papa que participaram deste concílio aparentemente estavam em plena aprovação. Na verdade, eles se juntaram nesta declaração da última sessão do concílio:
"Se alguém se recusa a reconhecer a Fócio como o santo patriarca e declina estar em comunhão com ele, a sua sorte será como Judas, e ele não será incluído entre os cristãos" [33].
Segundo um historiador ocidental do século XIX, geralmente antagonista em relação a Fócio,
"Este concílio foi, no geral, um evento verdadeiramente majestoso, como não foi visto desde o Concílio de Calcedônia." [34]
Este concílio proibiu estritamente qualquer alteração do Credo de Nicéia, rejeitando assim o Filioque:
"O Credo não pode ser subtraído, adicionado, alterado ou distorcido de qualquer maneira". [35]
A proclamação do concílio sobre o Credo de Nicéia é a seguinte:
"Assim, pensamos; nesta Confissão de Fé fomos batizados; através desta uma palavra de verdade, toda heresia é quebrada em pedaços e destruída. Nos inscrevemos como irmãos e pais da cidade celestial, aqueles que pensam assim. Se alguém, no entanto, se atreva a reescrever e a chamar esta Regra de Fé alguma outra exposição além da do Símbolo sagrado que foi difundido de cima pelos nossos abençoados e santos Padres até a nós mesmos e para arrebatar a autoridade da Confissão daqueles homens divinos, e impor-lhe as suas próprias frases inventadas e colocar isso como uma lição comum para os fiéis ou para aqueles que retornam de algum tipo de heresia, e mostrar a audácia de falsificar completamente a antiguidade deste sagrado e venerável Horós (Regra) com palavras ilegítimas, ou adições ou subtrações, tal pessoa deve, de acordo com o voto dos senhores sagrados e ecumênicos, que já foi aclamado antes de nós, ser submetido a um desdobramento completo se ele for um dos clérigos, ou ser expulso com um anátema se ele for um dos leigos." [36]
Além do que, além do mais,
"Este concílio também argumentou que o papa era um patriarca como todos os outros patriarcas, que não possuía autoridade sobre toda a Igreja e, portanto, não era necessário que o patriarca de Constantinopla recebesse a confirmação do pontífice romano". [37]
Nas palavras do Oxford Dictionary of Byzantium sobre este concílio: "Embora os 'privilégios' de Roma fossem reconhecidos [como sendo o primeiro entre os iguais], a autoridade canônica e jurisdicional do papa e do patriarca era definida em termos de igualdade (Canon 1). A jurisdição papal sobre a Igreja Bizantina foi assim excluída." [38]
O papa agora era João VIII (r. 872-882), sucessor do Papa Adriano II. De acordo com Vasiliev,
"Muito irritado, João enviou um legado a Constantinopla para insistir na anulação de qualquer medida aprovada no concílio que era desagradável ao papa. O legado também foi para obter certas concessões em relação à Igreja búlgara. Basílio e Fócio recusaram-se a ceder em qualquer desses pontos e até chegaram a prender o legado." [39]
No final, o Papa João aceitou as decisões desse concílio, mesmo que relutantemente, em parte por causa de seu antagonismo contra os alemães. Ele não pressionou o Filioque, ele não pressionou alegações alemãs ou romanas na Bulgária, e ele aceitou Fócio como legítimo patriarca. Aparentemente ele reconheceu que as políticas de Nicolau e a atitude agressiva tinham sido destrutivas para a unidade cristã.
Este Concílio de Fócio, e não o Conselho Ignacio que derrubou as barreiras e trouxe a paz entre Roma e Constantinopla que durou até o Grande Cisma de 1054. Mas essa relação tinha sido severamente prejudicada pela interferência do Papa Nicolau e de seus dois sucessores na vida interna da Igreja de Constantinopla. Pe. Schmemann reflete o ponto de vista ortodoxo sobre essa interferência quando ele escreve,
"Seria difícil imaginar mais mal-entendidos, intolerâncias e altivez do que o papa Nicolau e seus sucessores demonstraram na intervenção nas dificuldades internas da Igreja Bizantina." [40]
OS ÚLTIMOS ANOS DE FÓCIO
Fócio serviu como patriarca por mais seis anos, até que, em 886, o novo imperador Leão (r. 886-912), filho de Basílio I, imediatamente o anulou, provavelmente por razões pessoais. Sabe-se que Fócio tomou partido de Basílio em uma disputa que o imperador teve com seu filho Leão pouco antes da morte de Basílio.
São Fócio morreu em relativa obscuridade, no mosteiro de Armeniakon [41] ao redor do ano 891.
A ACEITAÇÃO DE ROMA E POSTERIOR REJEIÇÃO AO CONCÍLIO DE FÓCIO
O Concílio de Fócio e sua autoridade não foram questionadas em Roma nos próximos quase 200 anos. Uma forte evidência disso é dada pelo escritor católico romano Daniel J. Casellano quando afirma:
"No Ocidente, os primeiros canonistas, mais notavelmente St. Ivo de Chartres (último décimo primeiro centavo) e Gratian consideraram que o sínodo de Fócio de 879-880 tinha sido devidamente aprovado pelo Papa João VIII". [42]
Mas durante o tempo do Papa Gregório VII (r. 1073-1085), no período conhecido como Reforma Gregoriana, como mencionei no início deste artigo, os advogados do cânone papal voltaram para as décadas de tempestade (860 e 870), e substituiu o Concílio de Fócio pelo Concílio Inaciano de dez anos antes. Nas palavras do Oxford Dictionary of Byzantium, o Concílio de Fócio tinha sido
"Reconhecido como ecumênico por Roma até a Reforma Gregoriana, quando a tradição oficial romana foi abandonada em favor do Concílio de 869" (p. 513).
O erudito ortodoxo Pe. George Dragas pergunta,
"Como aconteceu que os católicos romanos passaram a ignorar esse fato conciliar? Seguindo Papadopoulos Kerameus, Johan Meijer, autor de um estudo mais aprofundado do Concílio de Constantinopla de 879/880, apontou que os canonistas católicos romanos se referiram em primeiro lugar ao Oitavo Concílio Ecumênico (o Inaciano) no início do século XII. Em consonância com Dvornik e outros, Meijer também explicou que isso foi feito deliberadamente porque esses canonistas precisavam naquela época do cânone 22 desse Concílio. [43] De fato, no entanto, eles ignoraram o fato de que este Concílio havia sido cancelado por outro, o Sínodo de Fócio de 879-880 — as atas dos quais também foram guardados nos arquivos pontifícios." [44]
Repercussões para as relações ortodoxas-católicas romanas
Quão diferentes relações teriam sido nos séculos que se seguiram, e até o presente, entre a ortodoxia e o catolicismo romano, se a Igreja romana continuasse a aceitar o Concílio de Fócio como legítimo e se tivesse cumprido plenamente com seus decretos! Pois, se a Igreja romana reafirmasse a legitimidade do Concílio de Fócio, rejeitando assim o Concílio de Inácio, os dois maiores obstáculos à reconciliação da Igreja Romana com a Ortodoxia seriam imediatamente removidos: o Filioque e as reivindicações da Igreja Romana para tem autoridade jurisdicional sobre as Igrejas orientais.
Como o Pe. John Meyendorff observa, ao comentar o levantamento mútuo pelo Papa e pelo Patriarca de Constantinopla em 1965 dos anátemas de 1054,
"Quão imensamente mais significativo, por exemplo, seria a restauração na lista dos Concílio Ecumênicos reconhecidos por Roma do Concílio de Constantinopla de 879-880, a única tentativa realmente bem sucedida de reunião entre Oriente e Ocidente. Para um dos resultados mais excitantes da pesquisa histórica contemporânea (especialmente os estudos de F. Dvornik), foi descoberta que este conselho, patrocinado e aprovado pelo Patriarca Fócio e o Papa João VIII, permaneceu nas listas ocidentais dos Concílios Ecumênicos até a século XI [ou pelo menos tinha sido aceito como totalmente legítimo, substituindo o Concílio Inaciano], quando os canonistas latinos o substituíram arbitrariamente pelo Concílio de 869-870. Uma decisão desse tipo certamente mudaria fundamentalmente as relações entre a ortodoxia e Roma." [45]
E se eu possa arriscar uma especulação: se a Igreja Ortodoxa designasse oficialmente o Concílio de Fócio como o Oitavo Concílio Ecumênico, talvez a Igreja Romana fosse empurrada para fazê-lo, no interesse de se reunir com a Santa Ortodoxia. Mas mesmo que isso nunca acontecesse, fazendo do Concílio de Fócio o Oitavo Concílio Ecumênico e os Concílios Palamitas, o Nono Concílio Ecumênico; e tendo os serviços litúrgicos em memória deles, juntamente com, claro, a veneração pelos pais nesses conselhos; a tremenda importância desses conselhos ficaria impressionada com os fiéis ortodoxos, que poderiam então se beneficiar espiritualmente ao aprender sobre (ou aprender mais sobre) suas decisões.
Além disso, através desses movimentos, eu acredito que o diálogo atual entre nossa Igreja e a Igreja Romana seria assim muito beneficiado, já que três das principais questões mais importantes seriam aprimoradas, colocadas em um alívio mais ousado, e os participantes seriam estimulados a entrar sobre eles de forma mais decisiva — as questões de
1) um imitável Credo Niceno;
2) independência jurisdicional para nossas várias Igrejas Ortodoxas — libertação da supervisão do Papado, exceto por restaurar a antiga compreensão do primado de honra do bispo romano como o "primeiro entre os iguais"; e
3) a distinção dogmática crucial entre a Essência e as Energias de Deus e a compreensão da salvação / santificação / deificação como consistindo na participação de cada pessoa nas Energias Divinas.
A AVALIAÇÃO DE FÓCIO HOJE
Os estudiosos ocidentais, influenciados pela veementemente perspectiva papal anti-Fociana, consideraram que Fócio era a principal figura culpa em causar o cisma temporário de 863 a 867 com a Igreja romana, e é por isso que hoje é chamado no Ocidente o "Cisma de Fócio" — como mencionei anteriormente. Adrian Fortescue, autor do artigo sobre "Fócio" na Enciclopédia Católica de 1911 [46] até o acusa de ser a principal fonte e causa do Grande Cisma de 1054! Fortescue termina seu artigo com estas palavras:
"Pode-se talvez resumir Fócio dizendo que ele era um grande homem com uma mancha em sua personalidade — sua ambição insaciável e sem escrúpulos. Mas essa mancha cobre sua vida, que eleclipsa tudo e faz com que ele merece o julgamento final como um dos piores inimigos que a Igreja de Cristo já teve, e a causa da maior calamidade que já a atingiu (minha ênfase)."
Felizmente, com o grande estudo de Francis Dvornik, de 1948, a que falei anteriormente, Fócio é agora mais geralmente aceito no Ocidente, como nas palavras de Dvornik,
"Um grande homem da igreja, um humanista erudito e um cristão genuíno, generoso o suficiente para perdoar seus inimigos e dar os primeiros passos para a reconciliação". [47]
Ele ainda é visto em uma luz negativa, no entanto, por todos os defensores das reivindicações papais para dominar todas as Igrejas de Cristo, devido à sua resistência inflexível contra o que entendemos ortodoxamente como esse erro fundamental da Igreja Romana.
A posição de São Fócio na Ortodoxia dificilmente poderia ser maior, como ele é homenageado, juntamente com São Marcos de Éfeso e São Gregório Palamas, como um dos Três Pilares da Ortodoxia. Esta designação parece ser intencionalmente paralela à veneração dada a São Basílio o Grande, São Gregório Teólogo e São João Crisóstomo como os Três Santos Hierarcas.
O dia da festa de São Fócio é celebrado na Santa Igreja Ortodoxa em 6 de fevereiro.
Por que o Concílio de Fócio não foi considerado ecumênico pela Igreja Ortodoxa?
Foi chamado pelo imperador; tinha representação de todo o mundo ortodoxo, incluindo legados de Roma; era grande; suas atas foram assinados por todos os Patriarcados; e se referiu a si mesmo como "este Sínodo Sagrado e Ecumênico". E, como diz o Dicionário de Oxford de Bizâncio, "as decisões do Concílio foram inseridas em cada coleção ortodoxa subseqüente do direito canônico e, normalmente, seguem os dos sete primeiros concílios ecumênicos. É referido como "ecumênico" por alguns autores bizantinos." [48]
No entanto, seu foco principal foi sobre uma questão administrativa/jurisdicional — referente à afirmação de toda a legitimidade da eleição de um patriarca orientador oriental — e não de uma questão cristológica prementes, que cada um dos sete Concílios Ecumênicos anteriores abordou — mesmo que pudesse ser afirmou que a Triadologia e, portanto, a cristologia, foram abordadas, na medida em que o Filioque foi proibido por este concílio.
Além disso, o próprio Fócio pode ter se mostrado relutante em proclamá-lo como o Oitavo Conselho por razões de humildade, já que o exonerou completamente dele; e também porque ele ainda estava disposto a garantir que o Concílio de Nicéia de 787 fosse plenamente reconhecido como o Sétimo Concílio Ecumênico — que também foi afirmado neste concílio.
Mas quaisquer que sejam as razões para a Igreja Ortodoxa não ter designado o Concílio de Fócio como o Oitavo Conselho até agora, por que não poderia ser reconsiderado em nosso próprio tempo, com oração, estudo e coragem, o que poderia resultar no discernimento que talvez o Espírito Santo está tentando mover nossa Igreja nessa direção, por razões pastorais?
Esforços contemporâneos na Ortodoxia para que seja reconhecido como o Oitavo Concílio Ecumênico
Aqui está uma lista parcial de exemplos do fato de que muitos no mundo ortodoxo defendem que o Concílio de Fócio seja designado oficialmente como o Oitavo Concílio Ecumênico:
"Em uma entrevista com a Interfax-Religion, o chefe do Departamento de Sinodais para Relações Igreja-Sociedade e os meios de comunicação de massa, Vladimir Legoida, nos deu uma visão sobre o próximo concílio e sua preparação, e também falou sobre como isso difere de um Concílio Ecumênico e como as críticas deste fórum devem ser percebidas:
Em primeiro lugar, é importante enfatizar que os concílios são a norma da vida da Igreja e não a sua distorção. Os Sete Concílios Ecumênicos — as assembléias mais importantes dos bispos no período antigo do cristianismo — tornaram-se firmemente incorporados em nossa consciência. No entanto, havia outros concílios extremamente importantes entre as hierarquias ortodoxas. Por exemplo, o Quarto Concílio de Constantinopla, também conhecido como o Concílio de Santa Sofia, convocou em 879 sob a presidência do Patriarca de Constantinopla, São Fócio. Este Concílio, entre outras coisas, incluiu o Segundo Concílio de Niceia em 787 entre os Concílios Ecumênicos. As decisões do Concílio de 879 tornaram-se parte da lei canônica da Igreja Ortodoxa. Alguns santos consideraram este Concílio como o Oitavo Concílio Ecumênico. E, embora não existisse um concílio na história da Igreja que afirme que este concílio tinha um estatuto tão elevado, a importância concedida ao Concílio de Santa Sofia deve ser levada em consideração, especialmente quando observamos o fato de que as pessoas dizem que o a vida conciliar da Igreja Ortodoxa terminou com os Sete Concílios Ecumênicos. Este não é o caso." [49]
De "Reconhecimento oficial dos 8º e 9º Sínodos Ecumênicos":
"Alguns anos atrás, a Igreja da Grécia decidiu iniciar o processo de reconhecimento oficial do Sínodo Ecumênico Oitavo e Nono, mas desde então a questão caiu. Sua Eminência Metropolitana Serafim do Piraeus, que defendeu esse reconhecimento e apresentou-o ao Patriarcado Ecumênico, decidiu avançar com ele em sua própria metrópole no nível local. Abaixo está a Declaração de Sua Eminência traduzida e abaixo que são as duas Encíclicas para cada um dos dois Sínodos Ecumênicos, estabelecendo a celebração da Sagrada Memória dos 383 Pais de Deus do 8º Sínodo Ecumênico no Segundo Domingo de Fevereiro, e os Pais de Deus do IX Sínodo Ecumênico no Segundo Domingo da Grande Quaresma." [50]
Este mesmo Metr. Serafin de Piraeus escreveu ao Patriarca da Sérvia. A proposta de Ireneu aos primazes das Igrejas Ortodoxas Autocefálicas reconhece oficialmente o Concílio de 879-880 em Constantinopla como o Oitavo Concílio Ecumênico e o Concílio Palamita de 1351 como o Nono Conselho Ecumênico:
"Você fez o trabalho do Espírito Santo. Você realizou o trabalho do Deus Triúno vivo." [51]
Pe. John Romanides defende fortemente o reconhecimento do Concílio de Fócio como o Oitavo Concílio Ecumênico e a série de concílios palamitas como o Nono Concílio Ecumênico. [52]
Do "Metropolita Hieroteos Vlachos de Nafpaktos no Diálogo Actual com Roma": [53]
Durante o primeiro milênio, a Igreja Ortodoxa enfrentou a questão do reconhecimento honorário do Papa de Roma. Isso aconteceu durante o Concílio na época de Fócio o Grande (879-880), que é considerado por muitos ortodoxos como o Oitavo Sínodo Ecumênico. Esses dois tipos de eclesiologia — isto é, do Papismo e da Igreja Ortodoxa — foram apresentados durante este Concílio. O Patriarca Fócio reconheceu um primado de honra para o Papa, mas apenas dentro do quadro eclesiológico ortodoxo — isto é, que o Papa tem um primado de honra dentro da Igreja, mas não pode ser colocado acima da Igreja. Portanto, na discussão relativa ao primado do Papa, a decisão deste Concílio deve ser levada em consideração.
Claro, durante este Concílio, a questão do Filioque também foi discutida, juntamente com a questão do primado; portanto, quando discutimos o assunto do primado hoje, devemos examiná-lo através do prisma do primado honorário, como devemos no caso do filioque (minha ênfase).
Além disso, o prolífico escritor ortodoxo moderno Pe. George Metallinos afirma o Concílio de Fócio como o oitavo Concílio Ecumênico.
De acordo com o artigo Orthodoxwiki intitulado "O Oitavo Concílio Ecumênico",
Uma das primeiras referências como "Oitavo Concílio Ecumênico" deve ser feita no século XV por São Marcos de Éfeso, que expressa a visão teológica geral dessa época em Constantinopla durante o chamado "Concílio" de Ferrara-Florença.
Além disso, a Encíclica dos Patriarcas Orientais de 1848 refere-se explicitamente ao "Oitavo Concílio Ecumênico" em relação ao sínodo de 879-880; e foi assinado pelos patriarcas de Constantinopla, Jerusalém, Antioquia e Alexandria, bem como os santos sinodais dos três primeiros.
Pe. George Dion. Dragas escreve em seu "Oitavo Concílio Ecumênico: Constantinople IV (879/880) e a Condenação do Filioque, Adição e Doutrina", publicado no Outono Ortodoxo para Inquéritos Dogmáticos em 28 de dezembro de 2009:
"Esses concílios, incluindo o de Constantinopla 879/880, o "Oitavo Ecumênico", como é chamado nos Tomos Charas do Patriarca Dositheos, que publicaram pela primeira vez seus trabalhos em 1705 e também pelo Metropolita Nilus Rhodi cujo texto é citado na edição de Mansi, não têm foi enumerado [como sendo "ecumênico"] no Oriente por causa da antecipação ortodoxa da possível cura do esquisto de 1054, que foi perseguida pelos ortodoxos até a captura de Constantinopla pelos turcos em 1453. Existem outros motivos óbvios que impediram enumeração, a maioria dos quais se relaciona com os anos difíceis que a Igreja Ortodoxa teve que enfrentar após a captura de Constantinopla e a dissolução do Império Romano que o procedeu."
Michael Prokurat, Bp. Alexander (Golitzin) e Michael D. Peterson escrevem no seu dicionário histórico da Igreja Ortodoxa:
"Por um acordo que parece estar em vigor no mundo ortodoxo, possivelmente o conselho realizado em 879 para reivindicar o Patriarca Fócio será, em alguma data futura, reconhecido como o oitavo concílio". [54]
E ainda mais,
"Dada a convocação de outro concílio ecumênico, a Igreja Ortodoxa certamente reconheceria o sínodo de 879 como o Oitavo Concílio Ecumênico. [55]
Tradução: Felipe Rotta.
Artigo Original: https://preachersinstitute.com/2017/11/12/st-photius-the-great-the-photian-council-and-relations-with-the-roman-church/
NOTAS:
[1] G. Ostrogorsky, History of the Byzantine State, p. 199; quoted in Bp. Kallistos Ware, The Orthodox Church, revised ed. [1993], p. 52.
[2] “Photios, Patriarch of Constantinople,” in the New Catholic Encyclopedia [1967], vol. 11, p. 327.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Despina S. White, Photios [Brookline, Mass.: Holy Cross Orthodox Press, 1981], p. 23; also see pp. 72-73.
[7] Ibid.
[8] Ibid. pp. 72-73.
[9] Ibid.
[10] The churches in Germany (the Holy Roman Empire) were especially resistant to being subjected under the authority of the Roman bishop, as is very evident from the story of St. Methodios of Pannonia and Moravia (with his brother St. Cyril, they are known as the Apostles to the Slavs).
[11] Ware, The Orthodox Church, p. 53.
[12] Ibid.
[13] Ibid.
[14] The Oxford Dictionary of the Christian Church, 2nd ed., p. 1087.
[15] Ware, p. 54.
[16] Ibid., p. 53.
[17] The Christian Centuries [New York: Paulist Press, 1969], vol. 2, pp. 78-79; my emphasis.
[18] PG 110.1048ff; English translation by Despina S. White and Joseph R. Berrigan, Jr., and entitled The Patriarch and the Prince [Brookline, Mass.: Holy Cross Orthodox Press, 1982.
[19] Holy Apostles Convent, The Lives of the Pillars of Orthodoxy [Buena Vista, Colo.: Holy Apostles Convent, 1990], p. 66.
[20] English translation by Holy Transfiguration Monastery, Brookline, Mass. (1983), and by Joseph P. Farrell (Holy Cross Orthodox Press, Brookline, Mass., 1987).
[21] Mystagogia, para. 9.
[22] Second ed., p. 1088.
[23] Holy Apostles Convent, p. 64; other excerpts are given on pp. 64-67.
[24] Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1948.
[25] p. 433.
[26] Ware, p. 55.
[27] Ibid.
[28] Dvornik, p. 328.
[29] See A. A. Vasiliev, History of the Byzantine Empire [Madison: Univ. of Wisconsin Press, 1952], vol. 1, p. 330.
[30] Ibid.
[31] See his Letter 17 in Despina White’s book, p. 161.
[32] See Neuner and Dupuis, The Christian Faith in the Doctrinal Documents of the Catholic Church (New York: Alba House, 1981), p. 232.
[33] Vasiliev, vol. 1, p. 331.
[34] Joseph Hergenrother; quoted by Ibid.
[35] Mansi 17:516C; Oxford Dictionary of Byzantium, p. 786.
[36] Translation by Fr. George Dragas, in “The Eighth Ecumenical Council: Constantinople IV (879/880) and the Condemnation of the Filioque, Addition and Doctrine,” posted in English on Dec. 28, 2009, at Orthodox Outlet for Dogmatic Enquiries (oodegr.co).
[37] Vasiliev, vol. 1, p. 331.
[38] p. 513.
[39] Vasiliev, vol. 1, pp. 331-332.
[40] Historical Road of Eastern Orthodoxy (SVS Press, 1977), p. 246.
[41] According to Dvornik, p. 329.
[42] “Commentary on the Fourth Council of Constantinople,” arcane knowledge.org, 2013.
[43] This canon prohibited the use of “lay investiture,” by which laymen (nobles, dukes, or kings) would appoint priests or bishops to their chapels, churches, abbacies, and bishoprics, instead of allowing the Church to make all such appointments. This was Pope Gregory VII’s chief concern during his pontificate.
[44] “The Eighth Ecumenical Council: Constantinople IV (879/880) and the Condemnation of the Filioque, Addition and Doctrine”; Mystagogy website; his emphasis.
[45] Orthodoxy and Catholicity (New York: Sheed and Ward, 1966), pp. 168-169; my emphasis.
[46] Easily and prominently available on the internet at the very popular newadvent.org site
[47] The Photian Schism, p. 432.
[48] p. 513.
[49] Posted on mospat.ru., January 6, 2016, under the title, “Councils are the Norm of Church Life and Not Its Distortion.”
[50] Author’s emphasis; posted at John Sanidopoulos’ Mystagogy website on Jan. 15, 2014 http://www.johnsanidopoulos.com/2014/01/an-official-recognition-of-8th-and-9th.html.
[51] In an article entitled “Serbian Church Proposes for the Recognition of the 8th and 9th Ecumenical Synods,” posted at John Sanidopoulos’s Mystagogy website on Sept. 30, 2015.
[52] See his “The Myth of Only Seven Ecumenical Councils” and “What are the Criteria for an Ecumenical Council?” at Mystagogy.
[53] Written in 2009; found on Mystagogy.
[54] In the article entitled “Ecumenical Councils; (Lanham, MD: Scarecrow Press, 1996), pp. 114-115.
[55] In the article entitled “Photios;” Ibid., p. 263.
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
O Suicídio do Ocidente (2/2) (Jonathan McCormack)
Então, e se algo como religião for verdadeira? E se Platão e os gregos estivessem em alguma coisa, que existe um mundo ideal lá fora, perfeito e incorruptível e, quanto mais nós o imitamos, mais ressoamos morfologicamente com esse reino, mais encarnamos a origem de toda a vida? Se assim for, então, no momento em que cessamos de realizar rituais religiosos, menos vida ressoa em nosso Reino material, não temos nada para conter a entropia natural da desintegração e da morte inerente ao universo, a própria forma de existência perde suas fronteiras, tudo se torna sem forma, tudo se torna normal, tudo se torna Kali trazendo a morte.
Então, agora temos um lugar não consagrado, encantado com os deuses da máquina, no centro não há deus senão dinheiro e isso não pode manter.
Mircea Eliade em "Consagração de um lugar: Repetição da cosmogonia" conta essa história, "Segundo as tradições dos achilpa, uma tribo Arunta, o Ser divino Numbakula “cosmizou”, nos tempos míticos, o futuro território da tribo, criou seu Antepassado e fundou suas instituições. Do tronco de uma árvore da goma, Numbakula moldou o poste sagrado (kauwa auwa) e, depois de o ter ungido com sangue, trepou por ele e desapareceu no Céu. Esse poste representa um eixo cósmico, pois foi à volta dele que o território se tornou habitável, transformou-se num “mundo”. Daí a importância do papel ritual do poste sagrado: durante suas peregrinações, os achilpa transportam-no sempre consigo e escolhem a direção que devem seguir conforme a inclinação do poste. Isto permite que os achilpa, embora se desloquem continuamente, estejam sempre no “seu mundo” e, ao mesmo tempo, em comunicação com o Céu, onde Numbakula desapareceu.
Se o poste se quebra, é a catástrofe; é de certa maneira o “fim do Mundo”, a regressão ao Caos. Contam Spencer e Gillen que, tendo se quebrado uma vez o poste sagrado, toda a tribo foi tomada de angústia; seus membros vaguearam durante algum tempo e finalmente sentaram -se no chão e deixaram-se morrer.
Esse exemplo ilustra admiravelmente, e a um só tempo, a função cosmológica do poste ritual e seu papel soteriológico: de um lado, o kauwa auwa reproduz o poste utilizado por Numbakula para cosmizar o mundo; de outro, é graças ao poste que os achilpa acreditam poder comunicar-se com o domínio celeste. Ora, a existência humana só é possível graças a essa comunicação permanente com o Céu. O “mundo” dos achilpa só se torna realmente o mundo deles na medida em que reproduz o Cosmos organizado e santificado por Numbakula. Não se pode viver sem uma “abertura” para o transcendente; em outras palavras, não se pode viver no “Caos”. Uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência no mundo já não é possível – e os achilpa deixam-se morrer."
DESMOND FENNELL credita a miscelânea de valores e regras na raiz do nosso suicídio coletivo. [1]
"Esse fator é a condição social que o sociólogo Emile Durkheim, em seu livro seminal sobre suicídio, chamou anomia, ou a falta de normas.
"Anomia é um conceito desenvolvido por Emile Durkheim para descrever a ausência de normas e valores sociais claros. No conceito de anomia, os indivíduos não têm senso de regulação social: as pessoas se sentem desorientadas nas escolhas que eles têm que fazer. Durkheim distinguiu entre suicídio egoísta, suicídio anomico, suicídio altruísta e suicídio fatalista, amplas classificações que refletem as teorias então predominantes do comportamento humano. Descartando o suicídio altruísta e fatalista como sem importância, ele viu o suicídio egoísta como conseqüência da deterioração dos vínculos sociais e familiares".
"... deixe-nos notar que a causa imediata do suicídio é uma dor extrema da alma, enquanto o ato em si é um fim deliberado da dor por destruição da consciência.
Sabemos o que aconteceu com essas "tribos primitivas". A geração mais nova de uma tribo, ao invés de encontrar uma abordagem para a vida que fazia sentido para eles como tinha com seus antepassados, encontrou cada vez mais uma miscelânea sem sentido de valores e regras. Como resultado, eles experimentaram cada vez mais a dor potencialmente letal e encontraram a liberação definitiva ou temporária da consciência através de suicídio ou embriaguez repetida, ou ambos. Simultaneamente, a fertilidade da tribo caiu quando se moveu em direção a um suicídio coletivo.
Quando um poder preponderante introduz seu próprio sistema de regras em uma comunidade estabelecida há muito tempo, de modo que os elementos de dois sistemas de regras opostos coabitam, a anomia se origina na comunidade afetada...pode ser descrita como colonização ideológica com um propósito professamente idealista que, como as intervenções europeias nas "tribos primitivas", visava trazer uma vida moralmente melhor.
...a partir da década de 1960, os valores e as regras americanas consumistas-liberais foram introduzidas nos EUA, e através dos aliados, para os satélites da Europa Ocidental.
Todos também podem se tornar esclarecidos e modernos, aceitando uma série de novos valores e novas regras de comportamento, pensamento e linguagem que estavam em desacordo com a herança européia em esferas-chave.
Isso produziu o que poderíamos chamar de "sofredores" e "oportunistas". O último, aproveitando a falta de normas, aumentou o número de assassinatos em seis vezes, introduziu-se indiferentemente em elos sexuais, o que levou a muitos mais famílias monoparentais do que a média européia, e assim por diante.
As gerações mais novas, não dirigidas pela sua sociedade ou seus pais desvalorizados, desempenharam um papel importante nesta desintegração social.
Os sofredores eram de dois tipos. Alguns, frustrados e ofendidos pelo fracasso da sociedade em oferecer-lhes uma abordagem coerente para a vida, destruíram sua consciência. Se mulheres, elas costumam fazer mais com auto-dano (uma tentativa de tornar a dor suportável transferindo-a de alma para corpo).
Jovens e mulheres assediados por ataques da dor buscam respaldo em fugas temporárias da consciência através do consumo excessivo de álcool e drogas. O outro tipo de sofredores, em sua maioria homens, tiraram a vida durante períodos de prosperidade porque se desesperaram de obter, esse crescente enriquecimento que a sociedade os levou a esperar".
A solução é uma imaginação sacramental, moldada em ritual religioso, uma re-imaginação religiosa radical que transfigura todo o cosmos.
[1] - https://www.irishtimes.com/opinion/mishmash-of-values-and-rules-at-the-root-of-suicide-1.12817 (em inglês)
Artigo Original: http://disfiguredpraise.blogspot.com.br/2017/07/suicide-of-west-part-2-durkheims.html
Tradução: James Paixão.
Então, agora temos um lugar não consagrado, encantado com os deuses da máquina, no centro não há deus senão dinheiro e isso não pode manter.
Mircea Eliade em "Consagração de um lugar: Repetição da cosmogonia" conta essa história, "Segundo as tradições dos achilpa, uma tribo Arunta, o Ser divino Numbakula “cosmizou”, nos tempos míticos, o futuro território da tribo, criou seu Antepassado e fundou suas instituições. Do tronco de uma árvore da goma, Numbakula moldou o poste sagrado (kauwa auwa) e, depois de o ter ungido com sangue, trepou por ele e desapareceu no Céu. Esse poste representa um eixo cósmico, pois foi à volta dele que o território se tornou habitável, transformou-se num “mundo”. Daí a importância do papel ritual do poste sagrado: durante suas peregrinações, os achilpa transportam-no sempre consigo e escolhem a direção que devem seguir conforme a inclinação do poste. Isto permite que os achilpa, embora se desloquem continuamente, estejam sempre no “seu mundo” e, ao mesmo tempo, em comunicação com o Céu, onde Numbakula desapareceu.
Se o poste se quebra, é a catástrofe; é de certa maneira o “fim do Mundo”, a regressão ao Caos. Contam Spencer e Gillen que, tendo se quebrado uma vez o poste sagrado, toda a tribo foi tomada de angústia; seus membros vaguearam durante algum tempo e finalmente sentaram -se no chão e deixaram-se morrer.
Esse exemplo ilustra admiravelmente, e a um só tempo, a função cosmológica do poste ritual e seu papel soteriológico: de um lado, o kauwa auwa reproduz o poste utilizado por Numbakula para cosmizar o mundo; de outro, é graças ao poste que os achilpa acreditam poder comunicar-se com o domínio celeste. Ora, a existência humana só é possível graças a essa comunicação permanente com o Céu. O “mundo” dos achilpa só se torna realmente o mundo deles na medida em que reproduz o Cosmos organizado e santificado por Numbakula. Não se pode viver sem uma “abertura” para o transcendente; em outras palavras, não se pode viver no “Caos”. Uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência no mundo já não é possível – e os achilpa deixam-se morrer."
DESMOND FENNELL credita a miscelânea de valores e regras na raiz do nosso suicídio coletivo. [1]
"Esse fator é a condição social que o sociólogo Emile Durkheim, em seu livro seminal sobre suicídio, chamou anomia, ou a falta de normas.
"Anomia é um conceito desenvolvido por Emile Durkheim para descrever a ausência de normas e valores sociais claros. No conceito de anomia, os indivíduos não têm senso de regulação social: as pessoas se sentem desorientadas nas escolhas que eles têm que fazer. Durkheim distinguiu entre suicídio egoísta, suicídio anomico, suicídio altruísta e suicídio fatalista, amplas classificações que refletem as teorias então predominantes do comportamento humano. Descartando o suicídio altruísta e fatalista como sem importância, ele viu o suicídio egoísta como conseqüência da deterioração dos vínculos sociais e familiares".
"... deixe-nos notar que a causa imediata do suicídio é uma dor extrema da alma, enquanto o ato em si é um fim deliberado da dor por destruição da consciência.
Sabemos o que aconteceu com essas "tribos primitivas". A geração mais nova de uma tribo, ao invés de encontrar uma abordagem para a vida que fazia sentido para eles como tinha com seus antepassados, encontrou cada vez mais uma miscelânea sem sentido de valores e regras. Como resultado, eles experimentaram cada vez mais a dor potencialmente letal e encontraram a liberação definitiva ou temporária da consciência através de suicídio ou embriaguez repetida, ou ambos. Simultaneamente, a fertilidade da tribo caiu quando se moveu em direção a um suicídio coletivo.
Quando um poder preponderante introduz seu próprio sistema de regras em uma comunidade estabelecida há muito tempo, de modo que os elementos de dois sistemas de regras opostos coabitam, a anomia se origina na comunidade afetada...pode ser descrita como colonização ideológica com um propósito professamente idealista que, como as intervenções europeias nas "tribos primitivas", visava trazer uma vida moralmente melhor.
...a partir da década de 1960, os valores e as regras americanas consumistas-liberais foram introduzidas nos EUA, e através dos aliados, para os satélites da Europa Ocidental.
Todos também podem se tornar esclarecidos e modernos, aceitando uma série de novos valores e novas regras de comportamento, pensamento e linguagem que estavam em desacordo com a herança européia em esferas-chave.
Isso produziu o que poderíamos chamar de "sofredores" e "oportunistas". O último, aproveitando a falta de normas, aumentou o número de assassinatos em seis vezes, introduziu-se indiferentemente em elos sexuais, o que levou a muitos mais famílias monoparentais do que a média européia, e assim por diante.
As gerações mais novas, não dirigidas pela sua sociedade ou seus pais desvalorizados, desempenharam um papel importante nesta desintegração social.
Os sofredores eram de dois tipos. Alguns, frustrados e ofendidos pelo fracasso da sociedade em oferecer-lhes uma abordagem coerente para a vida, destruíram sua consciência. Se mulheres, elas costumam fazer mais com auto-dano (uma tentativa de tornar a dor suportável transferindo-a de alma para corpo).
Jovens e mulheres assediados por ataques da dor buscam respaldo em fugas temporárias da consciência através do consumo excessivo de álcool e drogas. O outro tipo de sofredores, em sua maioria homens, tiraram a vida durante períodos de prosperidade porque se desesperaram de obter, esse crescente enriquecimento que a sociedade os levou a esperar".
A solução é uma imaginação sacramental, moldada em ritual religioso, uma re-imaginação religiosa radical que transfigura todo o cosmos.
[1] - https://www.irishtimes.com/opinion/mishmash-of-values-and-rules-at-the-root-of-suicide-1.12817 (em inglês)
Artigo Original: http://disfiguredpraise.blogspot.com.br/2017/07/suicide-of-west-part-2-durkheims.html
Tradução: James Paixão.
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
As Origens Pagãs do Purgatório (Craig Tuglia)
Muitos protestantes afirmam que a doutrina católica romana do Purgatório (os ortodoxos são misturados na questão) vem do paganismo. Para essa afirmação, algumas pessoas se recusam a oferecer evidências. Neste artigo, me esforcei para apresentar provas afirmativas e provar o seguinte:
1. Os textos Deuterocanônicos e Bíblicos não asseguram a alegação de que existe um Purgatório;
2. A filosofia platônica desenvolveu o Purgatório no século IV a.C. e a idéia de Purgatório já era popular entre os pagãos, como evidenciado por ser referenciado na Eneida (primeiro século a.C.);
3. Os escritos do terceiro século que começam a mencionar a noção de Purgatório (embora não pelo nome) provavelmente foram influenciados pelo platonismo.
1. Os textos deuterocânicos e bíblicos não confirmam o Purgatório. Não abordarei este primeiro ponto, já que eu já lidei com isso em outro lugar. Primeiro, vamos lidar com as passagens bíblicas supostamente sobre o Purgatório. A passagem favorita dos católicos é 1 Cor 3: 10-15, mas, em suma, a passagem diz que as obras dos construtores da igreja são testadas pelo fogo — não que todos, ou muitos dos crentes são purgados pelo fogo após a morte. Para dizer que esta passagem é sobre o Purgatório é um erro de categoria óbvio. Outras passagens menos citadas (Sl 66:10-12, Zc 13:9 e Ml 3:2-3) também não falam de Purgatório. Em vez disso, eles falam de como os crentes são disciplinados pelas provações nesta vida.
Por fim, há 2 Mac 12 que contém orações para os mortos (provavelmente, a oração pode ser em nome dos vivos). Por um lado, a passagem claramente desaprova a prática e, em segundo lugar, não está claro o propósito que as orações serviriam — diminuiriam o tempo das almas idólatras no purgatório ou talvez eles influenciem o julgamento de Deus longe de colocá-los permanentemente na Geena em vez do Paraíso? Nós não sabemos porque a passagem não nos diz.
2. Purgatório na filosofia grega. Obviamente, o cristianismo antigo não surgiu em um vácuo intelectual. Em vez disso, a filosofia grega, em parte, afetou a linguagem das Escrituras (João 1:1 e a discussão de Cristo sendo o Logos, por exemplo). Assim, sendo que alguns cristãos helenizados e judeus adotaram uma crença no Purgatório, não deve nos surpreender que a crença no Purgatório precedeu o judaísmo do primeiro século d.C.
Não vou exaustivamente provar este ponto, mas apenas citar dois exemplos proeminentes. Primeiro, vamos levar o que Platão diz no Livro X da República:
"Er, filho de Armênio, originário de Panfília. Ele morrera numa batalha; dez dias depois, quando recolhiam os cadáveres já putrefatos, o seu foi encontrado intacto. Levaram-no para casa, a fim de o entenarem, mas, ao décimo segundo dia, quando estava estendido na pira, ressuscitou.
Assim que recuperou os sentidos, contou o que tinha visto no além. No meio estavam sentados juízes, que, tendo dado a sua sentença, ordenavam aos justos que se dirigissem à direita na estrada que subia até o céu, depois de terem posto à sua frente um letreiro contendo o seu julgamento; e aos maus que se dirigissem à esquerda. Viu as almas que se iam, uma vez julgadas, pelas duas aberturas correspondentes do céu e da terra; pelas duas outras entravam almas que, de um lado, subiam das profundezas da terra, cobertas de sujeira e pó. Do outro, desciam, puras, do céu e as que vinham do seio da terra informavam-se do que se passava no céu. As demais, que vinham do céu, informavam do que se passava debaixo da terra contavam as suas aventuras gemendo e chorando, à lembrança dos inúmeros males e de tudo que tinham sofrido ou visto sofrer, durante a sua estada subterrânea, que tem mil anos de duração, ao passo que as outras, que vinham do céu, falavam de prazeres deliciosos e de visões de extraordinário esplendor. Diziam muitas coisas, Glauco, que exigiriam muito tempo para ser relatadas. Mas aqui está o resumo, segundo Er. Por determinado número de injustiças que tinha cometido em detrimento de uma pessoa e por determinado número de pessoas em detrimento das quais tinha cometido a injustiça, cada alma recebia, para cada falta, dez vezes a sua punição e cada punição durava cem anos, ou seja, a duração da vida humana, a fim de que a expiação fosse o décuplo do crime. Por exemplo, os que tinham causado a morte de muitas pessoas, seja traindo cidades ou exércitos, seja reduzindo homens à escravidão, seja se prestando a cometer qualquer outro tipo de maldade, eram atormentados dez vezes mais por cada um desses crimes. Os que, em vez disso, tendo praticado o bem à sua volta, tinham sido justos e piedosos, recebiam, na mesma proporção, a recompensa merecida."
O outro exemplo proeminente é o Livro VI da Eneida de Virgílio, onde seu pai, Anquises, diz:
"Por que, quando a vida os deixa na hora final, ainda todo o mal, todas as pragas da carne, infelizmente, não desapareceram completamente, e muitas coisas, muito endurecidas no fundo, devem necessariamente estar enraizadas, de maneiras estranhas. Então, eles são flagelados por tormentos e pagam o preço dos pecados anteriores: alguns são pendurados, esticados para os ventos vazios, a mancha da maldade é limpa para os outros em vastos golfos, ou queimada com fogo: cada espírito sofre o seu próprio: então, somos enviados através de um grande Elíseo, e nós poucos permanecemos nos campos de alegria, por um longo período de dias, até o ciclo do tempo, completo, é removida a mancha endurecida e deixa puro pensamento etéreo e o brilho do ar natural."
Agora, existem diferenças entre a visão de Purgatório de Platão e Virgílio e a da Igreja Católica? Claro. Seria tolo tentar provar que a doutrina do Purgatório foi simplesmente copiada e colada. No entanto, é bastante claro que, muito antes de 2 Macabeus terem sido escritos, Platão já transmitiu uma história sobre como todas as almas (ele inclui a si próprio no final) serão purgadas por 1000 anos após a morte antes de atingir sua visão do Paraíso (ou seja, os Campos Elíseos). Nós também vemos uma idéia muito semelhante na Eneida, onde a terminologia "queimada com fogo" é usada literalmente. Mesmo que Virgílio acreditasse que ambos Purgatório e, em seguida, uma estadia temporária nos Campos Elíseos existiam, estes eram ambos meramente preparatórios para a reencarnação.
3. Referências judaicas e cristãs primitivas sobre o Purgatório. Recentemente, Joe Heschmeyer escreveu um artigo sobre orações judaicas para os mortos. O artigo cita um escrito do século terceiro d.C., que afirma que por tais orações uma pessoa morta é liberada da Geena. Deste modo, Heschmeyer infere que muitos judeus acreditavam no Purgatório e, portanto, o Purgatório é uma crença pré-cristã que faz parte do judaísmo legítimo durante os dias de Jesus.
Em suma, há dois problemas com isso.
1. No Novo Testamento, a Geena é um termo para a condenação eterna, e não uma morada intermediária. O uso diferente do mesmo coloquialismo é altamente sugestivo não de uma continuação de uma crença dos dias de Jesus, mas uma mudança óbvia na crença.
2. Um escrito do terceiro século não prova que a maioria dos judeus no terceiro século outorgaram a tal idéia, muito menos prova por si só que a idéia pré-data há muito esse tempo.
Para provar # 2, vou fazer os três pontos a seguir. O terceiro é o mais longo:
Primeiro, se a doutrina do Purgatório fosse uma crença judaica bem estabelecida que foi levada ao cristianismo desde os tempos apostólicos, por que a doutrina era duvidosa mesmo no século V? O próprio Agostinho hesitou no assunto. No Handbook of Faith, Hope, and Love, seu comentário sobre a duvida da doutrina revela que certamente não era universalmente aceito em seu próprio tempo: "É uma questão que pode ser questionada, e seja comprovada ou deixada duvidosa, se alguns crentes deve passar por uma espécie de fogo purgatório" (Cap 69). Na Cidade de Deus, ele fala com o mesmo efeito: "Mas se se diz que no intervalo de tempo entre a morte deste corpo e aquele último dia de julgamento e retribuição que seguirão a ressurreição, os corpos dos mortos serão expostos a um fogo de tal natureza que não afetará aqueles que não teve nesta vida cedido com tais prazeres e perseguições que serão consumidos como madeira, feno, talho...isto não contradigo, porque possivelmente é verdade" (Livro 21, cap 26).
Segundo, a primeira menção de orações para os mortos na história da igreja pertence à arenga montanista de Tertuliano On Monogamy. No capítulo 10, ele escreve: "Na verdade, ela reza por sua alma, e solicita uma renovação para ele enquanto isso, e comunhão [com ele] na primeira ressurreição; e ela oferece [o seu sacrifício] nos aniversários de sua dormição". A partir disso, podemos perceber que a viúva mostra sua lealdade ao marido falecido por meio da oração para sua "renovação" após a morte e que ela possa se juntar a ele na ressurreição dos justos. O termo renovação, obviamente, é interpretado por católicos para significar que ele está com grandes dores e as orações, em certo sentido, o beneficiam. No entanto, esta não é uma interpretação necessária. Em Ap 6:10, os santos desesperam das perseguições cristãs e pedem justiça de Deus. É a "renovação" em relação a mitigar algum tipo de desespero percebido que existe entre os que estão no céu antes da ressurreição corporal dos justos? Sem o pressuposto de que o Purgatório existe, essa interpretação é facilmente executável.
Além disso, Tertuliano não comenta sobre se a viúva está sendo doutrinariamente sólida ao oferecer tais orações, mas mais propriamente, ela apenas faz por costume (talvez pagão). Ele simplesmente usa o exemplo para provar por que o recasamento não deveria existir, pois o costume mostra que uma verdadeira viúva sempre espera por seu marido. Tomar a passagem como prova do Purgatório é ir além do que a passagem realmente está ensinando.
Vamos seguir para o escritor Orígenes, que em suas Homilies on Jeremiah, interpreta explicitamente 1 Cor 3:10-15 como sendo sobre o Purgatório. Devemos notar que a sua fusão do pensamento platônico no cristianismo, com a sua crença de que as Escrituras contêm um significado superior acessível a apenas alguns, é bem conhecida.
É por esta razão que eu acredito que a crença filosófica pré-cristã no Purgatório foi importada para o pensamento cristão e judeu enquanto eles englobavam nas filosofias de seus dias. Sendo que o judaísmo rabínico hoje contém abertas tendências gnósticas e neoplatônicas, que certamente surgiram da influência romana e grega, qualquer convicção judaica do terceiro século ou mais antiga no Purgatório pode ter as mesmas origens. (Eu admito que há crenças pré-cristãs, como que há um Deus, que esteja correto e que apenas porque algo possa ser encontrado no Paganismo não significa que esteja errado.)
Terceiro, os católicos devem admitir que um único escrito do século terceiro não pode provar que todos os judeus acreditavam no Purgatório simplesmente por causa do exemplo de Firmiliano. Permita-me explicar.
Os católicos podem zombar de mim e dizer: "A crença no Purgatório existiu 'cedo' e ninguém se revoltou contra ela", como prova de minha afirmação de que uma única menção do século III é insuficiente. No entanto, os católicos também acreditam que toda a Igreja sempre considerou que o bispo de Roma é infalível e a cabeça incontestada da Igreja na Terra.
Cipriano, e muitos de seus contemporâneos, estavam claramente em oposição a tal idéia em meados do século III. A questão em debate era se o batismo dos hereges novacianos era válido. Cornélio e então Estevão, Bispos de Roma, acreditavam que os batismos eram válidos e que os crentes podem entrar na comunhão na Igreja através da imposição das mãos. Cipriano, Firmiliano (um Bispo da atual Turquia), e pelo menos cem* ou mais Bispos do Norte de África e do Oriente se opuseram aos "Papas" (como eles não eram chamados assim na época) sobre o assunto. Até hoje, os ortodoxos estão divididos nesta questão, o que sugere que os ensinamentos dos Papas nunca foram considerados vinculativos para um segmento considerável da Igreja.
Dito isto, a carta de Firmiliano a Cipriano é extremamente reveladora. Na Epístola 74, Firmiliano escreve que "os que estão em Roma não observam essas coisas em todos os casos que são transmitidos desde o início e fingem, em vão, a autoridade dos apóstolos" (Cap 6). Claramente, os Papas alegaram, e até pensaram que o que eles ensinavam era a tradição dos apóstolos — no entanto, Firmiliano e Cipriano não concordavam com eles, porque, supostamente, as Escrituras dos Apóstolos claramente ensinavam o contrário. Firmiliano observou no mesmo capítulo que "existem algumas diversidades entre eles [os cristãos romanos], e que todas as coisas não são observadas entre elas, assim como em muitas outras províncias também muitas coisas são variadas por causa da diferença dos lugares e nomes."
Em suma, os cristãos tiveram diversidade em suas crenças, algo que Firmiliano e Cipriano permitiram sob a circunstância de que os costumes fossem cumpridos por Bispos legitimamente instalados. Por exemplo, não importa o quanto eles não concordem com Estevão, eles não apoiaram o cisma sobre uma disputa doutrinária.
No entanto, "Estêvão se atreveu" de acordo com Firmiliano para perturbar a paz, insensivelmente ignorando as epístolas de Paulo e Pedro. Rumo ao final da Epístola, Firmiliano adverte que Estevão não atendeu as advertências apostólicas e que, ao fazê-lo, "discordou de tantos bispos em todo o mundo, rompendo a paz com cada um deles em vários tipos de discórdia: ao mesmo tempo com as igrejas orientais, como estamos seguros de que você conhece; em outro momento com você [Cipriano] que estão no sul"(Cap. 25).
A partir desta Epístola, podemos ver que Firmiliano afirma que mais de alguns Bispos em todo o mundo reconhecem não só uma grande diversidade na crença cristã sobre os batismos, a data da Páscoa e os sacramentos (ver cap. 6), mas também que na própria Roma existia uma divisão de opinião. Além disso, o resto do mundo se opôs a Roma e, como evidenciado pelo concílio de Cipriano na África e depois pela crença ortodoxa. Esses homens nunca se submeteram ao ensinamento de Estevão — algo completamente incompatível com a idéia de que a crença na infalibilidade papal era generalizada e aceita.
O que pode um católico responder a tudo isso? Simplesmente, que Cipriano e Firmiliano estavam errados. E talvez o apologista católico tenha razão.
Mas, ao conceder isso, ele provou o meu argumento de que uma única referência judaica do século terceiro não prova que os judeus historicamente aceitassem o Purgatório mais do que as especulações de Orígenes provariam o mesmo entre os cristãos. Se cem ou mais bispos no terceiro século podem estar errados ao interpretar as Escrituras e como elas se aplicam ao batismo e à infalibilidade papal, então certamente Orígenes (alguém que nem sequer foi Santo) e um maldito escritor judeu do Talmud poderiam estar errados também.
Conclusão. Ao descompactar a história da questão do Purgatório, podemos concluir firmemente o seguinte:
1. A ideia foi claramente elucidada por Platão e Virgílio.
2. Séculos depois foi elucidado por um único judeu e um cristão notável, que agora é considerado herege, no terceiro século.
3. Sabemos, de fato, que o pensamento grego foi obviamente importado tanto no judaísmo rabínico como no de pensadores cristãos específicos como Orígenes e Agostinho.
4. Incompativel com a afirmação de que o Purgatório era uma crença amplamente defendida por judeus e cristãos é que, no século V, Agostinho não estava convencido da dita doutrina.
5. Os católicos devem admitir que um par de escritos iniciais não podem provar que a doutrina do Purgatório foi amplamente aceita, muito menos correta, porque, ao fazê-lo, eles se cortaram nos joelhos quanto a respeito de como a doutrina da infalibilidade papal foi claramente rejeitada por bispos no terceiro século.
Em última análise, todo o precedente não pode provar que não há um Purgatório, porque este artigo não aborda a questão da autoridade religiosa (seja ela encontrada apenas nas Escrituras ou se é revelada pela tradição, o que corretamente interpreta as Escrituras que de outra forma claramente não ensina a doutrina). No entanto, espero ter feito o caso histórico de que a doutrina vem claramente do pensamento pagão e que alguns adeptos primitivos não demonstram historicamente que a doutrina é apostólica.
*Este é um número em que cheguei contando todos os Bispos que assinaram o concílio de Cipriano e a referência na carta de Firmiliano de que uma pluralidade de Bispos no Oriente, semelhante ao número na África, concordou com ele.
Postagem original: https://orthodoxchristiantheology.com/2016/12/10/the-pagan-origins-of-purgatory/
Tradução: James Paixão.
1. Os textos Deuterocanônicos e Bíblicos não asseguram a alegação de que existe um Purgatório;
2. A filosofia platônica desenvolveu o Purgatório no século IV a.C. e a idéia de Purgatório já era popular entre os pagãos, como evidenciado por ser referenciado na Eneida (primeiro século a.C.);
3. Os escritos do terceiro século que começam a mencionar a noção de Purgatório (embora não pelo nome) provavelmente foram influenciados pelo platonismo.
1. Os textos deuterocânicos e bíblicos não confirmam o Purgatório. Não abordarei este primeiro ponto, já que eu já lidei com isso em outro lugar. Primeiro, vamos lidar com as passagens bíblicas supostamente sobre o Purgatório. A passagem favorita dos católicos é 1 Cor 3: 10-15, mas, em suma, a passagem diz que as obras dos construtores da igreja são testadas pelo fogo — não que todos, ou muitos dos crentes são purgados pelo fogo após a morte. Para dizer que esta passagem é sobre o Purgatório é um erro de categoria óbvio. Outras passagens menos citadas (Sl 66:10-12, Zc 13:9 e Ml 3:2-3) também não falam de Purgatório. Em vez disso, eles falam de como os crentes são disciplinados pelas provações nesta vida.
Por fim, há 2 Mac 12 que contém orações para os mortos (provavelmente, a oração pode ser em nome dos vivos). Por um lado, a passagem claramente desaprova a prática e, em segundo lugar, não está claro o propósito que as orações serviriam — diminuiriam o tempo das almas idólatras no purgatório ou talvez eles influenciem o julgamento de Deus longe de colocá-los permanentemente na Geena em vez do Paraíso? Nós não sabemos porque a passagem não nos diz.
2. Purgatório na filosofia grega. Obviamente, o cristianismo antigo não surgiu em um vácuo intelectual. Em vez disso, a filosofia grega, em parte, afetou a linguagem das Escrituras (João 1:1 e a discussão de Cristo sendo o Logos, por exemplo). Assim, sendo que alguns cristãos helenizados e judeus adotaram uma crença no Purgatório, não deve nos surpreender que a crença no Purgatório precedeu o judaísmo do primeiro século d.C.
Não vou exaustivamente provar este ponto, mas apenas citar dois exemplos proeminentes. Primeiro, vamos levar o que Platão diz no Livro X da República:
"Er, filho de Armênio, originário de Panfília. Ele morrera numa batalha; dez dias depois, quando recolhiam os cadáveres já putrefatos, o seu foi encontrado intacto. Levaram-no para casa, a fim de o entenarem, mas, ao décimo segundo dia, quando estava estendido na pira, ressuscitou.
Assim que recuperou os sentidos, contou o que tinha visto no além. No meio estavam sentados juízes, que, tendo dado a sua sentença, ordenavam aos justos que se dirigissem à direita na estrada que subia até o céu, depois de terem posto à sua frente um letreiro contendo o seu julgamento; e aos maus que se dirigissem à esquerda. Viu as almas que se iam, uma vez julgadas, pelas duas aberturas correspondentes do céu e da terra; pelas duas outras entravam almas que, de um lado, subiam das profundezas da terra, cobertas de sujeira e pó. Do outro, desciam, puras, do céu e as que vinham do seio da terra informavam-se do que se passava no céu. As demais, que vinham do céu, informavam do que se passava debaixo da terra contavam as suas aventuras gemendo e chorando, à lembrança dos inúmeros males e de tudo que tinham sofrido ou visto sofrer, durante a sua estada subterrânea, que tem mil anos de duração, ao passo que as outras, que vinham do céu, falavam de prazeres deliciosos e de visões de extraordinário esplendor. Diziam muitas coisas, Glauco, que exigiriam muito tempo para ser relatadas. Mas aqui está o resumo, segundo Er. Por determinado número de injustiças que tinha cometido em detrimento de uma pessoa e por determinado número de pessoas em detrimento das quais tinha cometido a injustiça, cada alma recebia, para cada falta, dez vezes a sua punição e cada punição durava cem anos, ou seja, a duração da vida humana, a fim de que a expiação fosse o décuplo do crime. Por exemplo, os que tinham causado a morte de muitas pessoas, seja traindo cidades ou exércitos, seja reduzindo homens à escravidão, seja se prestando a cometer qualquer outro tipo de maldade, eram atormentados dez vezes mais por cada um desses crimes. Os que, em vez disso, tendo praticado o bem à sua volta, tinham sido justos e piedosos, recebiam, na mesma proporção, a recompensa merecida."
O outro exemplo proeminente é o Livro VI da Eneida de Virgílio, onde seu pai, Anquises, diz:
"Por que, quando a vida os deixa na hora final, ainda todo o mal, todas as pragas da carne, infelizmente, não desapareceram completamente, e muitas coisas, muito endurecidas no fundo, devem necessariamente estar enraizadas, de maneiras estranhas. Então, eles são flagelados por tormentos e pagam o preço dos pecados anteriores: alguns são pendurados, esticados para os ventos vazios, a mancha da maldade é limpa para os outros em vastos golfos, ou queimada com fogo: cada espírito sofre o seu próprio: então, somos enviados através de um grande Elíseo, e nós poucos permanecemos nos campos de alegria, por um longo período de dias, até o ciclo do tempo, completo, é removida a mancha endurecida e deixa puro pensamento etéreo e o brilho do ar natural."
Agora, existem diferenças entre a visão de Purgatório de Platão e Virgílio e a da Igreja Católica? Claro. Seria tolo tentar provar que a doutrina do Purgatório foi simplesmente copiada e colada. No entanto, é bastante claro que, muito antes de 2 Macabeus terem sido escritos, Platão já transmitiu uma história sobre como todas as almas (ele inclui a si próprio no final) serão purgadas por 1000 anos após a morte antes de atingir sua visão do Paraíso (ou seja, os Campos Elíseos). Nós também vemos uma idéia muito semelhante na Eneida, onde a terminologia "queimada com fogo" é usada literalmente. Mesmo que Virgílio acreditasse que ambos Purgatório e, em seguida, uma estadia temporária nos Campos Elíseos existiam, estes eram ambos meramente preparatórios para a reencarnação.
3. Referências judaicas e cristãs primitivas sobre o Purgatório. Recentemente, Joe Heschmeyer escreveu um artigo sobre orações judaicas para os mortos. O artigo cita um escrito do século terceiro d.C., que afirma que por tais orações uma pessoa morta é liberada da Geena. Deste modo, Heschmeyer infere que muitos judeus acreditavam no Purgatório e, portanto, o Purgatório é uma crença pré-cristã que faz parte do judaísmo legítimo durante os dias de Jesus.
Em suma, há dois problemas com isso.
1. No Novo Testamento, a Geena é um termo para a condenação eterna, e não uma morada intermediária. O uso diferente do mesmo coloquialismo é altamente sugestivo não de uma continuação de uma crença dos dias de Jesus, mas uma mudança óbvia na crença.
2. Um escrito do terceiro século não prova que a maioria dos judeus no terceiro século outorgaram a tal idéia, muito menos prova por si só que a idéia pré-data há muito esse tempo.
Para provar # 2, vou fazer os três pontos a seguir. O terceiro é o mais longo:
Primeiro, se a doutrina do Purgatório fosse uma crença judaica bem estabelecida que foi levada ao cristianismo desde os tempos apostólicos, por que a doutrina era duvidosa mesmo no século V? O próprio Agostinho hesitou no assunto. No Handbook of Faith, Hope, and Love, seu comentário sobre a duvida da doutrina revela que certamente não era universalmente aceito em seu próprio tempo: "É uma questão que pode ser questionada, e seja comprovada ou deixada duvidosa, se alguns crentes deve passar por uma espécie de fogo purgatório" (Cap 69). Na Cidade de Deus, ele fala com o mesmo efeito: "Mas se se diz que no intervalo de tempo entre a morte deste corpo e aquele último dia de julgamento e retribuição que seguirão a ressurreição, os corpos dos mortos serão expostos a um fogo de tal natureza que não afetará aqueles que não teve nesta vida cedido com tais prazeres e perseguições que serão consumidos como madeira, feno, talho...isto não contradigo, porque possivelmente é verdade" (Livro 21, cap 26).
Segundo, a primeira menção de orações para os mortos na história da igreja pertence à arenga montanista de Tertuliano On Monogamy. No capítulo 10, ele escreve: "Na verdade, ela reza por sua alma, e solicita uma renovação para ele enquanto isso, e comunhão [com ele] na primeira ressurreição; e ela oferece [o seu sacrifício] nos aniversários de sua dormição". A partir disso, podemos perceber que a viúva mostra sua lealdade ao marido falecido por meio da oração para sua "renovação" após a morte e que ela possa se juntar a ele na ressurreição dos justos. O termo renovação, obviamente, é interpretado por católicos para significar que ele está com grandes dores e as orações, em certo sentido, o beneficiam. No entanto, esta não é uma interpretação necessária. Em Ap 6:10, os santos desesperam das perseguições cristãs e pedem justiça de Deus. É a "renovação" em relação a mitigar algum tipo de desespero percebido que existe entre os que estão no céu antes da ressurreição corporal dos justos? Sem o pressuposto de que o Purgatório existe, essa interpretação é facilmente executável.
Além disso, Tertuliano não comenta sobre se a viúva está sendo doutrinariamente sólida ao oferecer tais orações, mas mais propriamente, ela apenas faz por costume (talvez pagão). Ele simplesmente usa o exemplo para provar por que o recasamento não deveria existir, pois o costume mostra que uma verdadeira viúva sempre espera por seu marido. Tomar a passagem como prova do Purgatório é ir além do que a passagem realmente está ensinando.
Vamos seguir para o escritor Orígenes, que em suas Homilies on Jeremiah, interpreta explicitamente 1 Cor 3:10-15 como sendo sobre o Purgatório. Devemos notar que a sua fusão do pensamento platônico no cristianismo, com a sua crença de que as Escrituras contêm um significado superior acessível a apenas alguns, é bem conhecida.
É por esta razão que eu acredito que a crença filosófica pré-cristã no Purgatório foi importada para o pensamento cristão e judeu enquanto eles englobavam nas filosofias de seus dias. Sendo que o judaísmo rabínico hoje contém abertas tendências gnósticas e neoplatônicas, que certamente surgiram da influência romana e grega, qualquer convicção judaica do terceiro século ou mais antiga no Purgatório pode ter as mesmas origens. (Eu admito que há crenças pré-cristãs, como que há um Deus, que esteja correto e que apenas porque algo possa ser encontrado no Paganismo não significa que esteja errado.)
Terceiro, os católicos devem admitir que um único escrito do século terceiro não pode provar que todos os judeus acreditavam no Purgatório simplesmente por causa do exemplo de Firmiliano. Permita-me explicar.
Os católicos podem zombar de mim e dizer: "A crença no Purgatório existiu 'cedo' e ninguém se revoltou contra ela", como prova de minha afirmação de que uma única menção do século III é insuficiente. No entanto, os católicos também acreditam que toda a Igreja sempre considerou que o bispo de Roma é infalível e a cabeça incontestada da Igreja na Terra.
Cipriano, e muitos de seus contemporâneos, estavam claramente em oposição a tal idéia em meados do século III. A questão em debate era se o batismo dos hereges novacianos era válido. Cornélio e então Estevão, Bispos de Roma, acreditavam que os batismos eram válidos e que os crentes podem entrar na comunhão na Igreja através da imposição das mãos. Cipriano, Firmiliano (um Bispo da atual Turquia), e pelo menos cem* ou mais Bispos do Norte de África e do Oriente se opuseram aos "Papas" (como eles não eram chamados assim na época) sobre o assunto. Até hoje, os ortodoxos estão divididos nesta questão, o que sugere que os ensinamentos dos Papas nunca foram considerados vinculativos para um segmento considerável da Igreja.
Dito isto, a carta de Firmiliano a Cipriano é extremamente reveladora. Na Epístola 74, Firmiliano escreve que "os que estão em Roma não observam essas coisas em todos os casos que são transmitidos desde o início e fingem, em vão, a autoridade dos apóstolos" (Cap 6). Claramente, os Papas alegaram, e até pensaram que o que eles ensinavam era a tradição dos apóstolos — no entanto, Firmiliano e Cipriano não concordavam com eles, porque, supostamente, as Escrituras dos Apóstolos claramente ensinavam o contrário. Firmiliano observou no mesmo capítulo que "existem algumas diversidades entre eles [os cristãos romanos], e que todas as coisas não são observadas entre elas, assim como em muitas outras províncias também muitas coisas são variadas por causa da diferença dos lugares e nomes."
Em suma, os cristãos tiveram diversidade em suas crenças, algo que Firmiliano e Cipriano permitiram sob a circunstância de que os costumes fossem cumpridos por Bispos legitimamente instalados. Por exemplo, não importa o quanto eles não concordem com Estevão, eles não apoiaram o cisma sobre uma disputa doutrinária.
No entanto, "Estêvão se atreveu" de acordo com Firmiliano para perturbar a paz, insensivelmente ignorando as epístolas de Paulo e Pedro. Rumo ao final da Epístola, Firmiliano adverte que Estevão não atendeu as advertências apostólicas e que, ao fazê-lo, "discordou de tantos bispos em todo o mundo, rompendo a paz com cada um deles em vários tipos de discórdia: ao mesmo tempo com as igrejas orientais, como estamos seguros de que você conhece; em outro momento com você [Cipriano] que estão no sul"(Cap. 25).
A partir desta Epístola, podemos ver que Firmiliano afirma que mais de alguns Bispos em todo o mundo reconhecem não só uma grande diversidade na crença cristã sobre os batismos, a data da Páscoa e os sacramentos (ver cap. 6), mas também que na própria Roma existia uma divisão de opinião. Além disso, o resto do mundo se opôs a Roma e, como evidenciado pelo concílio de Cipriano na África e depois pela crença ortodoxa. Esses homens nunca se submeteram ao ensinamento de Estevão — algo completamente incompatível com a idéia de que a crença na infalibilidade papal era generalizada e aceita.
O que pode um católico responder a tudo isso? Simplesmente, que Cipriano e Firmiliano estavam errados. E talvez o apologista católico tenha razão.
Mas, ao conceder isso, ele provou o meu argumento de que uma única referência judaica do século terceiro não prova que os judeus historicamente aceitassem o Purgatório mais do que as especulações de Orígenes provariam o mesmo entre os cristãos. Se cem ou mais bispos no terceiro século podem estar errados ao interpretar as Escrituras e como elas se aplicam ao batismo e à infalibilidade papal, então certamente Orígenes (alguém que nem sequer foi Santo) e um maldito escritor judeu do Talmud poderiam estar errados também.
Conclusão. Ao descompactar a história da questão do Purgatório, podemos concluir firmemente o seguinte:
1. A ideia foi claramente elucidada por Platão e Virgílio.
2. Séculos depois foi elucidado por um único judeu e um cristão notável, que agora é considerado herege, no terceiro século.
3. Sabemos, de fato, que o pensamento grego foi obviamente importado tanto no judaísmo rabínico como no de pensadores cristãos específicos como Orígenes e Agostinho.
4. Incompativel com a afirmação de que o Purgatório era uma crença amplamente defendida por judeus e cristãos é que, no século V, Agostinho não estava convencido da dita doutrina.
5. Os católicos devem admitir que um par de escritos iniciais não podem provar que a doutrina do Purgatório foi amplamente aceita, muito menos correta, porque, ao fazê-lo, eles se cortaram nos joelhos quanto a respeito de como a doutrina da infalibilidade papal foi claramente rejeitada por bispos no terceiro século.
Em última análise, todo o precedente não pode provar que não há um Purgatório, porque este artigo não aborda a questão da autoridade religiosa (seja ela encontrada apenas nas Escrituras ou se é revelada pela tradição, o que corretamente interpreta as Escrituras que de outra forma claramente não ensina a doutrina). No entanto, espero ter feito o caso histórico de que a doutrina vem claramente do pensamento pagão e que alguns adeptos primitivos não demonstram historicamente que a doutrina é apostólica.
*Este é um número em que cheguei contando todos os Bispos que assinaram o concílio de Cipriano e a referência na carta de Firmiliano de que uma pluralidade de Bispos no Oriente, semelhante ao número na África, concordou com ele.
Postagem original: https://orthodoxchristiantheology.com/2016/12/10/the-pagan-origins-of-purgatory/
Tradução: James Paixão.
sábado, 4 de novembro de 2017
O Suicídio do Ocidente (1/2) (Jonathan McCormack)
Os Deuses Fugiram da Nossa Amnésia Infestada de Ouro
"Porque o amor expira tão logo os deuses tenham voado." (A morte de Empédocles, Holderlin)
A tempestade perfeita — as taxas de suicídio estão crescendo, não só as pessoas não têm bebês, nem sequer fazem sexo — e isso é verdade em todo o mundo ocidental. Os deuses fugiram, levando nossa própria vida com eles. A menos que um homem prepare uma morada para os deuses, eles não voltarão. Mas talvez eles não tenham fugido, talvez nós temos parado de relembrá-los.
O físico Rupert Sheldrake afirma que o cérebro não é como um computador. É mais como um receptor de televisão que sintoniza a consciência cósmica que está em toda parte, e que, quando nos lembramos de algo há muito tempo, realmente "ressoamos morfologicamente" com o passado nos campos morficos que existem no tempo e no espaço. Recordar é uma prática ativa, ao fazê-lo, ressoamos morfologicamente e encarnamos a presença de Deus no mundo. Peter Leithart revisa um novo livro (Knowledge by Ritual por Dru Johnson) e diz:
"Nosso conhecimento está conectado ao que fazemos com nossos corpos. Não conhecemos mentes desencarnadas; sem corpos e as ferramentas pelas quais estendemos nossos corpos, não poderíamos saber nada. Além disso, não conhecemos isoladamente, mas em comunidade, especificamente, em ritos comunais. Nós praticamos ritos para saber."
Agora, a maioria dos nossos ritos seculares orienta-nos para uma visão particular e materialista da realidade, que é apoiada e constantemente reforçada pelas ideologias dominantes de hoje e martelada em casa pelas presunções do discurso de hoje. Podemos ver isso em construções religiosas seculares, em conceitos como "ego" e "inconsciente", que são entidades abstratas imateriais que de alguma forma possuem valores ou moral, que são reificados da experiência direta e abstraídos em teorias de reações neuroquímicas de forças evolutivas.
No passado, os rituais diários nos apontavam para o Divino, mediado por qualquer forma cultural que tenha sido então dominante. Neste período histórico altamente aberrante, em vez de projetar anjos, projetamos outros símbolos "científicos" para interpretar a realidade, igualmente misteriosos, desconcertantes, invisíveis, muitas vezes imbuindo-os com os mesmos poderes ocasionais que espíritos.
Weber observou enquanto "muitos deuses antigos ascendem de seus túmulos", eles são rapidamente "desencantados", tomando "a forma de forças impessoais". Talvez não tenha desencantado a Terra, mas encantava-a com os anti-deuses do ateísmo. Fenomenologicamente, esses rituais seculares nos formam na intenção e na criação de certos mundos.
James K.A. Smith escreve,
"As pessoas humanas são criaturas intencionais cuja maneira fundamental de 'pretender' o mundo é amor ou desejo. Esse amor ou desejo — que é inconsciente ou não cognitivo — é sempre alvo de alguma visão da boa vida, uma articulação particular do reino. O que nos privilegia de sermos tão orientados — e agirmos em conformidade — é um conjunto de hábitos ou disposições que são formados em nós através de meios afetivos, corporais, especialmente práticas corporais, rotinas ou rituais que agarramos dos nossos corações através da nossa imaginação, que está intimamente ligado aos nossos sentimentos corporais... as liturgias — sejam 'sagradas' ou 'seculares' — formam e constituem nossas identidades formando nossos desejos mais fundamentais e nossa sintonização mais básica ao mundo. Em suma, as liturgias nos tornam certos tipos de pessoas, e o que nos define é o que amamos
Embora normalmente pensemos em liturgias em termos de prática religiosa, Smith diz que 'alguns dos chamados rituais seculares constituem liturgias'. Smith define as liturgias como 'espécies de prática' ou 'rituais de máxima preocupação' que são 'formativos para a identidade", 'inculcar visões particulares da boa vida' e 'fazê-lo de forma a propalar outras formações rituais'.
A liturgia é uma estratégia de 'corações e mentes ', uma pedagogia que nos treina como discípulos precisamente colocando nossos corpos através de um regime de práticas repetidas que se apoderam de nosso coração e 'apontam' nosso amor para o reino de Deus. Antes de articular uma visão de mundo, adoramos antes de teorizar a natureza de Deus, cantamos seus louvores antes de pensar, oramos. Esse é o tipo de animais que somos, em primeiro lugar: animais amorosos, desejosos, afetivos e litúrgicos que, em sua maior parte, não habitam o mundo como pensadores ou máquinas cognitivas. A minha afirmação é que, tendo em conta o tipo de animais que somos, rezamos antes de acreditar, adoramos antes de sabermos — ou melhor, adoramos para saber."
Vivemos em uma sociedade tecnológica, com rituais desumanos, de forma anormal, fazemos máquinas homens.
'Eu ouvi meu professor dizer que quem usa máquinas faz todo o trabalho dele como uma máquina. Aquele que faz seu trabalho como uma máquina cresce com um coração como uma máquina, e aquele que carrega o coração de uma máquina em seu peito perde sua simplicidade. Aquele que perdeu sua simplicidade fica inseguro com os esforços de sua alma. A incerteza nos esforços da alma é algo que não concorda com um sentido honesto. Não é que eu não conheço tais coisas; tenho vergonha de usá-los.'
- Provérbio chinês (relatado por Heisenberg)
O teólogo David Bentley Hart opina,
"Não estou disposto a acreditar que suas culturas são de alguma forma mais primitivas ou irracionais do que as nossas. É verdade que eles vêm de nações que nada gozam de nossas vantagens econômicas e tecnológicas; mas, uma vez que estas vantagens são tão propensas a nos distrair da realidade como para nos conceder alguma visão especial sobre isso, esse fato quase não atinge o nível de irrelevância. A verdade seja dita, não há uma razão remotamente plausível — além de uma preferência por nossos próprios pressupostos sobre os de outros povos — por que as convicções e experiências de um poliglota e filósofo africano, cujos trabalhos pastorais e sociais o obrigam a se envolver imediatamente nas realidades concretas de centenas de vidas, deveriam mandar um assentimento menos racional de nós do que as certezas pequenas, não comprovadas e doutrinárias de pessoas que passaram suas vidas nos supermercados e antes nas telas de televisão e imersas na reclusão estéril e alucinada de seus estudos particulares."
Em vez de esperar por Deus, Deus está nos esperando, esperando que façamos um arco para ele em nossos corações. Nós fazemos isso por lembrança, Platão chamou-a de anamnese. No cristianismo, lembramos de Deus com todo o nosso corpo revivendo a Vida de Cristo nos ritmos litúrgicos do ano e experimentamos o evento de crucificação e ressurreição de Cristo durante a liturgia, encarnando o nascimento do universo ritualmente.
Esqueça o protestantismo com seus arrendamentos e contratos, trata-se de ser apanhado na vida de Deus, sendo enxertado como uma Videira na sua Árvore da Vida que é a cruz.
Deste modo, co-criamos com Deus, santificamos a Terra, oferecendo-a ritualmente a Deus, onde isto é abençoado com a graça vivificante antes de ser retornado à nós, senão só pode ser matéria morta, esmorecida. Pegamos a maçã e isso nos deu a morte, no Jardim mítico. Quando algo é dado, ele é alterado ontologicamente como um veículo para a Graça, ao dar a Deus isso é incumbido com a vida.
Durante a Eucaristia, damos a Deus o presente mais valioso de todos, Ele mesmo. Oferecemos Deus a Deus, Deus se rende, torna-se um humano fraco que deitou em nossos braços para que possamos devolver a Ele. A Eucaristia é então abençoada com Deus a fonte de todos os valores e é devolvido a nós o que consumimos.
Do mesmo modo, quando oferecemos a nossa vida a Deus, ela é devolvida a nós em uma forma vivificante abençoada.
Quanto menos abençoamos o mundo, mais a morte ganha preponderância; Platão observou que o material tem uma entropia natural para o que se propõe ao caos, é através do ritual religioso que lhe damos forma para manter sua integridade, isso é verdade para as formações sociais também.
Ao dar a criação a Deus, é devolvido a nós encantado, cheio de valor e significado.
A visão Moderna do Iluminismo tem a idéia de que tudo é apenas um monte de átomos e matéria, mas essa não é nossa experiência real, isso é apenas uma idéia.
Roube um anel. É apenas um monte de átomos. Seu valor é exclusivamente monetário. Mas, se for dado um anel, alguém pretende dar como presente para nós, e de repente, ele se apresenta como tendo também "valores sentimentais". Ambos são simbólicos, o ouro é apenas uma pedra, mas, fenomenologicamente, aparece como algo corado de significado quando recebido como presente. É assim que tornamos o mundo significativo — nós oferecemos coisas e recebemos como presentes.
Agora, talvez, apenas talvez, quando algo seja dado, mudanças de estrutura ontológica também, afinal, não se apresenta como um monte de átomos para nosso intelecto racional, mas um mundo inteiro de significados agora se apresenta também a nossa intuição.
Se o que eu escrevi tem alguma verdade, então a Vida só pode ser recebida se for recebida como presente, caso contrário será experimentada como uma carga pressionada sobre uma pessoa — como um morto vivo. E eu acho que só pode ser recebido como presente se for dado como presente — para Deus, outros, o mundo, etc. Uma economia de presente não faz a compensação financeira, mas não nivela todas as transações somente. Em uma pequena comunidade local, onde as pessoas se conhecem, esse bolo de casamento também pode ser dado como uma expressão de amor.
Não há nada de errado com uma economia de mercado, lucros ou corporação organizada organicamente dentro de uma hierarquia de valores sociais, porém o capitalismo tardio assumiu uma forma cultural específica que molda a humanidade para a intenção de práticas cheias da morte.
É o seu próprio ritual, ou antes, anti-ritual.
Afinal, mesmo Marx caracterizou o capitalismo como assumindo uma função religiosa, um animismo monetário moderno.
Eugene McCarraher observa que o místico anarquista desajustado Simone Weil
"especulou que, assim como 'a levedura só faz subir a massa se ela for misturada com ela', da mesma maneira 'existem certas condições materiais para a operação sobrenatural do divino que está presente na Terra'. O conhecimento daquelas 'condições materiais' para 'operação sobrenatural', pensaria Weil, constituem 'o verdadeiro conhecimento da mecânica social'. Se a matéria não é exatamente 'animada', o mundo material da sociedade e da história poderia ser um canal para a divindade. Por ter 'esquecido a existência de uma ordem divina do universo', não conseguimos ver que 'o trabalho, a arte e a ciência são apenas formas diferentes de entrar em contato com isto'".
Como Rowan Williams explica, a sacramentalidade implica a crença de que "as coisas materiais carregam o seu significado mais completo quando são meio de presente, não instrumentos de controle ou objetos para acumulação".
McCarrher continua,
"Esta crítica sacramental da metafísica marxista não seria de que é 'muito materialista', mas sim que não é suficientemente materialista — isto é, que não fornece uma descrição adequada da própria matéria, de seu caráter sacramental e revelador. A sacramentalidade tem implicações ontológicas e sociais, para o 'presente' que Williams identifica é 'a graça de Deus e a vida comum assim formada.'"
Cabe a nós oferecer o mundo a Deus, recebê-lo de volta com graça e significado, caso contrário este mundo só pode dar a Morte.
Tradução: James Paixão.
Artigo original: http://disfiguredpraise.blogspot.com.br/2017/07/suicide-of-west-part-1-gods-have-fled.html
Assinar:
Postagens (Atom)